sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz 2011!!!

A todos os seguidores deste modesto blog desejamos um Feliz Ano Novo, onde impere a liberdade de pensamento, o reconhecimento à exterioridade, a humildade intelectual, o desejo de justiça social e, principalmente, a alteridade. Um fraternal abraço, Leandro Gornicki Nunes.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A Incoerência Funcional do Sistema Prisional

Segundo dados oficiais do Ministério da Justiça, o custo para manutenção de uma pessoa no sistema prisional brasileiro gira em torno de R$ 3.000,00. É preciso esclarecer que isso não implica no recebimento por parte dos presos de benefícios nesse valor, mas, tão-somente, ser este o custo de toda a estrutura, incluindo os agentes de segurança pública. Essa informação deve(ria) causar grande indignação da população, porque os valores investidos pelos governos federal e estadual na educação dos nossos jovens ficam muito abaixo do valor referido. Aliás, nem chegam perto...
A incoerência funcional do sistema prisional é evidente! Embora muitos tenham a ilusão de que a violência desse sistema seja a solução para o problema da violência e da insegurança pública, a realidade é outra: o sistema prisional não retribui o mal injusto causado pelo crime, não corrige ninguém, não protege bens jurídicos (vida, patrimônio, liberdades etc.) e não representa uma ameaça àqueles que decidem praticar crimes.
Seguramente, nem mesmo a pena de morte retribui o mal injusto de crimes violentos, como homicídio, latrocínio e estupro. A execução da pena privativa de liberdade não reeduca, apenas degenera o ser humano, afastando-o cada vez mais dos ideais éticos que devem nortear a vida na sociedade. Pontualmente falando, os bens jurídicos continuam desprotegidos. O discurso falacioso de “lei e ordem”, muito em voga na atualidade, é difundido pelo terror midiático, envolvendo os menos avisados que não percebem que, apesar de todo o recrudescimento das leis penais ocorrido desde os anos 90 e da minimização de garantias no processo penal, os índices de criminalidade crescem diariamente.
E isso tudo é bom para quem? Certamente, é bom para muitos. Porém, é péssimo para a maioria da população, principalmente, a menos favorecida economicamente, que se torna mais vulnerável nos dois sentidos: primeiro, quando é alvo da criminalização promovida pelo Estado bourgeois, e, segundo, quando se vê no epicentro da violência, pois é nos bolsões de miséria que ela mostra a sua face mais horrenda.
São as empresas de seguros, de vigilância privada, de armas e os agentes públicos desonestos os que mais se beneficiam com esse quadro de pânico estimulador do crescimento e da incoerência funcional do sistema prisional.
A população brasileira, entorpecida pela carência de educação política e apavorada com as informações bombardeadas na mídia, vê o sistema prisional como a única solução dos problemas de segurança pública, esquecendo-se que somente por meio de um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social é que os índices de violência cairão. Também se esquece de ver no “outro” um ser igual em direitos e deveres, anseios, angústias, medos, e que a violação dos Direitos Humanos não pode ser aplaudida. Afinal, hoje, o “outro” pode ser alvo do sistema prisional. Mas, amanhã, todos nós seremos o “outro”, e, então, será tarde demais, ficando os nossos filhos para pagar a conta da incoerência funcional do sistema prisional, onde o único ponto de coerência está no fato de ser ele mantenedor e garantidor desse estado de coisas repleto de abismos sociais.
Dois são os caminhos que levam à mudança da forma como o sistema prisional deve ser visto: o primeiro emerge de uma ação altruísta, onde reconhecemos que a penúria, a miséria e a desigualdade social são causas relevantes dos índices de violência, mormente em uma sociedade consumista como a nossa, onde o homem é valorizado pelo que apresenta e não pelo que é (american lifestyle); o segundo, mais pragmático, é fruto de uma estratégia de autoconservação, criada a partir da observação de que todos nós seremos vítimas dessa maximização do Estado Penal em detrimento do Estado de Bem-Estar Social. O abismo social é o animal que irá nos devorar se não mudarmos já.
A cegueira mata! E os mitos evitam que enxerguemos o mundo da vida. Neste mundo, jovens são aniquilados pelo sistema penal – dentro e fora dele –. E nessa louca balada, vamos vivendo temerosos de andar pelas ruas, cuja patologia é retratada em quadros paranóicos. Mas, é preciso lutar democraticamente contra o ceticismo, cuja tarefa compete àqueles comprometidos com a ética e com o progresso do país.
Estado Social máximo, com grandes investimentos em educação, e Direito Penal mínimo. Essa deve ser a busca de todos. Fora daí, tudo é engodo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Maniqueísmo, Mídia, Manipulação e M...

Continuamos jogando verba pública fora... Educação Já!

As recentes ocupações de favelas cariocas pela polícia e as forças armadas reaqueceram a discussão a segurança pública no país. Mas antes mesmo dessas operações, os investimentos no setor já davam uma boa medida da preocupação que o tema suscita. E uma pesquisa mostra que o Brasil gastou mais de R$ 45 bilhões em segurança pública em 2009. E mesmo com a retração da economia no ano passado, os investimentos na área aumentaram cerca de 15% em comparação com 2008.
Só O Governo Federal destinou quase R$ 8 bilhões em segurança no ano passado. Esse valor supera as despesas com habitação e saneamento. Entre os estados, São Paulo é o que mais recebe verbas para segurança. Apesar do aumento de verbas, os índices de criminalidade ficaram praticamente estáveis nos últimos cinco anos.
Cumpre destacar que o Estatuto do Desarmamento não promoveu o desarmamento e o número de homicídio no país aumentou. Continuamos cegos?!

domingo, 5 de dezembro de 2010

La Zona

O filme La Zona (1), premiado no Festival de Cinema de Toronto em 2007, é uma grande contribuição para a criminologia crítica e um retrato do modo como muitas pessoas estão vivendo e pensando as questões criminais nos grandes centros urbanos, onde proliferam condomínios residenciais fechados, semelhantes aos castelos medievais que separavam a nobreza dos servos. Em resumo, na Cidade do México, Alejandro (Daniel Tovar) é um adolescente que vive em La Zona, um condomínio fechado protegido por guardas particulares. No dia de seu aniversário três jovens de uma favela vizinha invadem o local, para assaltar uma das casas. Durante o assalto eles matam uma mulher, mas a empregada da casa consegue fugir e avisa a segurança local, que acaba matando dois dos invasores. Porém, Miguel (Alan Chávez), um jovem de 16 anos, consegue se esconder, sem conseguir fugir de La Zona, em face do aparato tecnológico que monitora o lugar. Logo em seguida um grupo de moradores se reúne em assembléia, onde fica decidido que nada será dito às autoridades públicas e que eles próprios procurarão Miguel, que está escondido no interior do condomínio.
A correlação do filme com a realidade atual dos grandes centros urbanos está fundada na flagrante divisão social, onde as pessoas privilegiadas economicamente têm uma obsessão por segurança e querem impor a sua própria lei: “olho por olho, dente por dente”. A lógica de Talião é o que move as ações das pessoas na “caça ao bandido” ainda não localizado.
No meio dessa trama, o medo aparece a cada cena do filme como o grande tormento dos personagens, que representam fidedignamente as pessoas da classe média e alta de sociedades como a brasileira. Nesse ambiente, não há confiança em ninguém. Os pais desconfiam dos filhos e os filhos desconfiam dos pais. Ninguém confia em ninguém! A intransigência é uma característica das decisões. Afinal, o conteúdo das decisões (extremado) é proporcional ao medo sentido por todos, principalmente, a partir do isolamento nessa ilha do privilégio, onde o outro (estrangeiro) é um desconhecido, e, dessa forma, passa a ser aterrorizante.
A corrupção é outra conseqüência desse mundo de desigualdades sociais, onde – não raro – os detentores do poder econômico se sentem legitimados a “comprar” qualquer funcionário público vinculado ao sistema de justiça criminal, o que acaba sendo um catalisador das desigualdades do processo de criminalização secundária. Nota-se que a seletividade do sistema de justiça criminal tem como principal causa as desigualdades sociais, pois, esse sistema é extremamente eficaz no controle e destruição daqueles que não pertencem aos extratos mais ricos dessa sociedade.
Os excluídos de La Zona, não possuem qualquer utilidade e, magistralmente, o diretor Rodrigo Plá esbofeteia a face do espectador do filme, no momento em que os rapazes invasores (mortos) são colocados em sacos de lixo e descartados na caixa coletora do condomínio, sem direito a qualquer garantia processual ou última homenagem de seus familiares. Lixo! Isso é o que eles são para os moradores do condomínio.
Esse simulacro de um estado de polícia evidencia o pensamento totalitário dos moradores de La Zona. Nessas condições, o outro não é reconhecido como sujeito. Porém, felizmente, Alejandro, representa a esperança que devemos ter num futuro com menos intolerância e reconhecimento à exterioridade, onde o outro espera ser reconhecido como sujeito, eis que só assim alcançaremos uma democracia radical.

(1) PLÁ, Rodrigo. La Zona. [Filme-vídeo]. Direção de Rodrigo Plá. México. 2007. DVD, 93 min. color. son.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Guerra no Rio de Janeiro

Em tempos de "tomada de territórios" e "luta contra o mal" na cidade do Rio de Janeiro, deixo duas frases de Bertold Brecht:

"O que tem fome e te rouba o último pedaço de pão, chama-o teu inimigo. Mas não saltas ao pescoço do teu ladrão que nunca tem fome".

"Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas, ninguém chama violentas às margem que o comprimem".

Cuidemos para o nosso olhar não se infectar com o vírus midiático e, assim, sermos acometidos pela cegueira!...

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

STF: 2ª Turma anula processo em que réu preso não foi levado ao depoimento de testemunha de acusação

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a ocorrência de nulidade processual absoluta no processo criminal que resultou na condenação do serigrafista Ednaldo Faria Ferreira a 20 anos e seis meses de prisão por latrocínio (roubo seguido de morte), ocorrido em Duque de Caxias (RJ). Em consequência da decisão, o processo foi anulado a partir do depoimento da única testemunha de acusação. No Habeas Corpus (HC 95106), a defesa do serigrafista sustentou que o fato dele não ter sido intimado do depoimento da testemunha teria cerceado seu direito à ampla defesa e ao contraditório.
Na sessão desta tarde, o julgamento do HC foi retomado pelo ministro Gilmar Mendes, que, após as considerações do ministro Celso de Mello, reconheceu, no caso concreto, a ocorrência da nulidade alegada. Mendes afirmou que a questão relativa à necessidade de presença do réu nas audiências ainda é controversa no STF, sendo a jurisprudência majoritária da Corte no sentido da sua desnecessidade.
O decano do STF, ministro Celso de Mello, fez uma defesa veemente da necessidade de se assegurar ao réu preso o direito de comparecimento na audiência de inquirição de testemunhas. “O Estado tem o dever de assegurar ao réu preso o exercício pleno do direito de defesa. O acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, o direito de assistir e o direito de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza sempre sob a égide do contraditório”, afirmou.
Para o ministro, "as costumeiras alegações" do Poder Público quanto às dificuldades ou às inconveniências de se remover os acusados presos a outros pontos do Estado ou do País não devem ser aceitas. “Razões de mera conveniência administrativa não têm nem podem ter precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição: o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do devido processo legal”, afirmou Celso de Mello, admitindo que esse direito pode ser assegurado por meio de videoconferência.
O ministro Celso de Mello salientou que o direito de o réu comparecer à audiência consta não só da Convenção Americana de Direitos Humanos, como também do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. “Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos”, afirmou.

Processo relacionado: HC 95106

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Giro linguístico: o dia em que o feitiço se virou contra o feiticeiro...

O delegado Protógenes Queiroz foi condenado pela Justiça Federal a três anos e quatro meses de prisão pelos crimes de violação de sigilo funcional e fraude processual. A pena foi substituída por restrições de direitos — Protógenes terá que prestar serviços à comunidade em um hospital público ou privado, "preferencialmente de atendimento a queimados", e fica proibido de exercer mandato eletivo, cargo, função ou atividade pública. Ele pode recorrer. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo.
Idealizador da Operação Satiagraha, polêmica investigação sobre suposto esquema de evasão de divisas e lavagem de dinheiro envolvendo Daniel Dantas, do Grupo Opportunity, Protógenes elegeu-se deputado federal pelo PCdoB com 94.906 votos — insuficientes para chegar à Câmara, mas pelo quociente eleitoral ele pegou carona na votação do palhaço Tiririca (PR-SP). Em sua campanha eleitoral, Protógenes usou como trunfo a prisão do banqueiro e ações contra políticos. Entre eles, o ex-prefeito Paulo Maluf (PP), preso em 2005.
A sentença, de 46 páginas, foi aplicada pelo juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Criminal Federal em São Paulo, que acolheu denúncia da Procuradoria da República. Também foi condenado o escrivão da PF Amadeu Ranieri Bellomusto, braço direito de Protógenes. A base da condenação é um inquérito da PF.
Conduzido pelo delegado Amaro Vieira Ferreira, o inquérito revela que Protógenes divulgou conteúdo da investigação coberta pelo sigilo. Ele teria forjado prova usada em Ação Penal da 6ª Vara Federal contra Dantas, que acabou condenado a dez anos de prisão por corrupção ativa. O juiz destaca que Protógenes efetuou "práticas de monitoramento clandestino, mais apropriadas a um regime de exceção, que revelaram situações de ilegalidade patente".
"O caso é emblemático", assinala o juiz. "Não representa apenas uma investigação de crimes comuns previstos no Código Penal, representa precipuamente a apuração de um método, próprio de polícia secreta, empreendido sob a égide da Constituição, mas à margem das mais comezinhas regras do Estado democrático de Direito."
Protógenes pode recorrer da sentença, em apelação ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Ele não respondeu a contato da reportagem do Estadão. Seu advogado, Adib Abdouni, foi categórico. "Acredito na inocência de Protógenes. Vamos recorrer para que ele seja absolvido. A Satiagraha foi um trabalho de repercussão nacional porque a investigação foi muito bem feita."
Desde que se tornou alvo da Polícia Federal, o delegado tem negado irregularidades. Ele afirma que sua conduta é ilibada. "Não me corrompi, agi sempre no estrito cumprimento do dever", repete a interlocutores.
O delegado considera "absolutamente legal" a utilização de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na Operação Satiagraha. Ele destaca que é comum as instituições agirem em parceria. Cita o Banco Central e a Receita. "Não cometi nenhum ato ilícito", diz sempre que questionado sobre o caso.

Sintoma: a legalidade ainda segura...

A posse de chip de celular por presidiário não se enquadra nas infrações disciplinares graves previstas no artigo 50 da Lei de Execução Penal (LEP). Com esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto concedeu liminar em Habeas Corpus em favor de um detento de Cruz Alta (RS).
"Tenho por acertado o entendimento defensivo de que a conduta assumida pelo paciente não se amolda a nenhuma das hipóteses do artigo 50 da Lei de Execução Penal", frisou o ministro. Ele afirmou que, mesmo o chip sendo imprescindível para o funcionamento de um aparelho celular, ele sozinho não permite a comunicação com alguém fora da penitenciária ou mesmo com outros detentos.
Ayres Britto considerou que "a classificação de determinada conduta como infração disciplinar de natureza grave pressupõe uma acurada avaliação da falta eventualmente cometida pelo condenado." Nesse exame, explica o ministro, deve-se incorporar um juízo de graduação da indisciplina, mesmo grave, para, se for o caso, "proporcionalizar as consequências dela advindas".

O caso

Patrik de Souza foi condenado a pena de 18 anos de reclusão por homicídio qualificado e cumpria pena em regime semiaberto. Em novembro de 2008, foram encontrados com ele dois chips de telefone celular e foi instaurado procedimento administrativo disciplinar para apuração de eventual falta grave. O Juízo de Execuções homologou o procedimento, determinando a regressão ao regime fechado e a perda dos dias remidos.
A Defensoria Pública da União entrou com HC no Supremo depois que o Superior Tribunal de Justiça decidiu — ao analisar Recurso Especial do Ministério Público contra o paciente — que a posse do chip, "sendo acessório essencial para o funcionamento do aparelho telefônico, tanto quanto o próprio celular em si, caracteriza falta grave". O STJ considerou a Lei 11.466/2007, que alterou a LEP para incluir a posse, utilização ou fornecimento "de aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo", como falta disciplinar grave.
A Defensoria alegou, no entanto, que é impossível considerar a conduta do preso como falta disciplinar grave, porque a mera posse de chip não se subsume a nenhuma das hipóteses previstas na LEP. O órgão afirmou ainda que não se pode ampliar o rol de faltas disciplinares de natureza grave sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, pois o reconhecimento da infração depende de previsão legal anterior.

Com informações da Assessoria de Imprensa do STF (HC 105.973)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Corpos dóceis e úteis: a disciplina do trabalho e a dominação dos pobres

Memorial apresentado pela FIESP, em 1926, ao Presidente da República, quando do projeto da primeira lei de férias de 15 dias:

“que fará um trabalhador braçal durante 15 dias de ócio? Ele não tem o culto do lar, como ocorre nos países de padrão de vida elevado. Para nosso proletariado, para o geral do nosso povo, o lar é um acampamento – sem conforto e sem doçura. O lar não pode prendê-lo e ele procurará matar as suas longas horas de inação nas ruas. A rua provoca com freqüência o desabrochar de vícios latentes e não vamos insistir nos perigos que ela representa para o trabalhador inativo, inculto, presa fácil dos instintos subalternos que sempre dormem na alma humana, mas que o trabalho jamais desperta!”

Fonte: VIANNA, Luiz Wernck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. 2ª Ed. SP: Paz e Terra, 1980. p. 80.

domingo, 10 de outubro de 2010

Dois pesos... (Maria Rita Kehl)

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

FONTE: Jornal O Estado de São Paulo, em 02 de outubro de 2010.

Comentário: após essa publicação, Maria Rita Kehl foi sumariamente demitida do periódico e ficou evidenciada a tensão social (luta de classes) que existe no país, de modo que a liberdade de expressão não é aceita pelas correntes reacionárias, o que configura uma violação aos direitos humanos. O que as elites desejam mesmo é restabelecer o voto censitário que existia na Constituição de 1824...

A propósito, votarei na opção vinculada às lutas das frentes de libertação dos oprimidos!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

PERÍCIA. ARMA. FOGO. POTENCIALIDADE LESIVA. QUALIFICADORA.

A jurisprudência assente na Turma dispõe que, para incidir a majorante prevista no art. 157, § 2º, I, do CP, é imprescindível apreender a arma para, posteriormente, aferir sua potencialidade lesiva mediante perícia. No caso, o exame pericial constatou que ela não se encontrava apta para a realização de disparo, assim, afasta-se o acréscimo decorrente do emprego de arma. Logo, a Turma concedeu a ordem, afastando a mencionada qualificadora. Precedentes citados: HC 111.769-SP, DJe 3/8/2009, e AgRg no HC 111.143-RS, DJe 2/3/2009. HC 118.439-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 28/9/2010.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Hamilton Carvalhido alerta sobre mudanças no projeto do novo CPP

O ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), manifestou preocupação com as modificações no projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), em discussão no Congresso Nacional. O ministro foi o presidente da comissão de juristas em que se discutiu o novo texto.
Em palestra no VII Seminário Ítalo-Ibero-Brasileiro, que se realiza no STJ até este sábado (25), o ministro Carvalhido disse que todos os integrantes da comissão sabiam que não elaboravam um projeto acabado. Ele ressaltou que, diferentemente dos trabalhos da comissão que elaborou o novo Código de Processo Civil (CPC), o grupo presidido por ele construiu um anteprojeto que, depois de apresentado, é que seria debatido pelos parlamentares e representantes da sociedade em audiências públicas.
Segundo Carvalhido, sempre houve pressões e lobby para influenciar o projeto. “Hoje há um substitutivo no qual foram introduzidas modificações que nós rejeitaríamos plenamente. Mas isso faz parte do jogo democrático”, afirmou. Apesar da observação, o ministro disse que a essência do projeto está mantida.
O texto elaborado pela comissão de juristas coloca cada operador do direito no devido lugar. Estabelece, por exemplo, que juízes não podem participar de investigações, nem formular acusação no lugar do promotor. “É preciso que quem julga não esteja contaminado por pré-julgamento”, explicou Carvalhido.
Antes de tratar das linhas gerais traçadas no anteprojeto, o ministro Carvalhido falou sobre a evolução do direito penal no Brasil. Lembrou que sua formação foi dogmática, forjada numa concepção em que o direito começava e terminava na lei. “A discussão sociológica, ética ou de qualquer outro valor não fazia parte dessa ciência”, disse o ministro, referindo-se a uma época em que os juízes estavam presos ao ordenamento jurídico e os operadores do direito eram descompromissados com a realidade.
Segundo Carvalhido, a evolução foi lenta. O discurso ideológico da prisão era muito intenso e não havia preocupação com o cabimento de prisão antes da condenação. O ordenamento jurídico e a jurisprudência demoraram muito para permitir a apelação em liberdade, afastar a obrigatoriedade da prisão por pronúncia, e decidir que só a prisão realmente necessária deveria ser mantida. “São lembranças muito pesadas para quem tem afeição pela liberdade e pela dignidade humana.”
Quem viveu esse período teme que o clamor social contra a impunidade e por mais segurança verificado atualmente, associada à necessidade da classe política de dar uma resposta a esse anseio, resultem num retrocesso.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Hermenêutica e Decisão Jurídica

Esta edição do programa Aula Magna aborda o tema "Hermenêutica e Decisão Jurídica", com o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Luiz Streck. Ele inicia a palestra tratando da distinção do assunto quanto à argumentação jurídica. O procurador acrescenta que a hermenêutica é vista por ele como um instrumento filosófico e não mercadológico. O palestrante faz um retrospecto da evolução histórica da hermenêutica, mostrando desde como se interpreta a como se aplica o valor da pré--compreensão, e avança nas questões que envolvem a hermenêutica e os mitos do direito até chegar à hermenêutica jurídica. Confira a íntegra desta palestra no programa veiculado pela TV Justiça.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

AÇÕES PRESCRITAS. CONDUTA SOCIAL NEGATIVA.

A 3ª Seção do STJ reiterou entendimento de que a existência de processos judiciais sem trânsito em julgado, inquéritos arquivados, bem como processos extintos pela prescrição da pretensão punitiva, não podem ser considerados para a caracterização de maus antecedentes, de má conduta social e, muito menos, da personalidade voltada para o crime, pois prevalece o princípio da presunção de inocência. Precedentes citados do STF: RHC 80.071-RS, DJ 2/4/2004, do STJ: HC 109.051-SC, DJe 15/6/2009; HC 39.030-SP, DJ 11/4/2005; HC 96.670-DF, DJe 8/2/2010; HC 104.071-MS, DJe 25/5/2009, e REsp 620.624-RS, DJ 29/11/2004. RvCr 974-RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 25/8/2010.

domingo, 29 de agosto de 2010

El derecho de soñar (por Eduardo Galeano)

Vaya uno a saber como será el mundo más allá del año 2000. Tenemos una única certeza: si todavía estamos ahí, para entonces ya seremos gente del siglo pasado y, peor todavía, seremos gente del pasado milenio.
Sin embargo, aunque no podemos adivinar el mundo que será, bien podemos imaginar el que queremos que sea. El derecho de soñar no figura entre los treinta derechos humanos que las Naciones Unidas proclamaron a fines de 1948. Pero si no fuera por él, y por las aguas que da de beber, los demás derechos se morirían de sed.
Deliremos, pues, un ratito. El mundo, que está patas arriba, se pondrá sobre sus pies cuando:
-En las calles, los automóviles serán pisados por los perros.
-El aire estará limpio de los venenos de las máquinas y no tendrá más contaminación que la que emana de los miedos humanos y de las humanas pasiones.
-La gente no será manejada por el automóvil, ni será programada por la computadora, ni será comprada por el supermercado, ni será mirada por el televisor.
-El televisor dejará de ser el miembro más importante de la familia, y será tratado como la plancha o el lavarropas.
-La gente trabajará para vivir, en lugar de vivir para trabajar.
-En ningún país irán presos los muchachos que se nieguen a hacer el servicio militar, sino los que quieran hacerlo.
-Los economistas no llamarán nivel de vida al nivel de consumo, ni llamarán calidad de vida a la cantidad de cosas.
-Los cocineros no creerán que a las langostas les encanta que las hiervan vivas.
-Los historiadores no creerán que a los países les encanta ser invadidos.
-Los políticos no creerán que a los pobres les encanta comer promesas.
-El mundo ya no estará en guerra contra los pobres, sino contra la pobreza, y la industria militar no tendrá mas remedio que declararse en quiebra por siempre jamás.
-Nadie morirá de hambre, porque nadie morirá de indigestión.
-Los niños de la calle no serán tratados como si fueran basura, porque no habrá niños en la calle.
-Los niños ricos no serán tratados como si fueran dinero, porque no habrá niños ricos.
-La educación no será el privilegio de quienes puedan pagarla.
-La policía no será la maldición de quienes no puedan comprarla.
-La justicia y la libertad, hermanas siamesas condenadas a vivir separadas, volverán a juntarse, bien pegaditas, espalda contra espalda.
-Una mujer, negra, será presidenta de Brasil y otra mujer, negra, será presidenta de los Estados Unidos de América. Una mujer india gobernará Guatemala y otra, Perú.
-En Argentina, las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental, porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria.
-La Santa Madre Iglesia corregirá algunas erratas de las piedras de Moisés. El sexto mandamiento ordenará: "Festejarás el cuerpo". El noveno, que desconfía del deseo, lo declarará sagrado.
-La Iglesia también dictará un undécimo mandamiento, que se le había olvidado al Señor: "Amarás a la naturaleza, de la que formas parte".
-Todos los penitentes serán celebrantes, y no habrá noche que no sea vivida como si fuera la última, ni día que no sea vivido como si fuera el primero.

domingo, 22 de agosto de 2010

A imprensa e a renovação do STF (por Dalmo de Abreu Dallari)

Dentro de poucos dias será escolhido um novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). E a imprensa tem dado muito menos importância a isso do que à escolha do novo treinador da seleção brasileira de futebol. O erro não está na grande publicidade dada à escolha na área esportiva, mas na grave omissão relativamente à escolha de relevante interesse público.
Para que se tenha idéia do significado e da importância da escolha do novo membro do Supremo Tribunal basta lembrar que ele é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o que tem a última palavra na decisão de questões que envolvem direitos fundamentais – dizendo a Constituição, expressamente, que ele é o principal responsável pela guarda da Constituição.
Por suas atribuições, e pela força jurídica de suas decisões, o Supremo Tribunal Federal pode exercer grande influência na vida do povo brasileiro e por isso a escolha de seus integrantes, que a Constituição põe nas mãos do presidente da República, tem enorme importância. Por tudo isso, é oportuna uma reflexão sobre o preenchimento da vaga que será aberta dentro de poucos dias no STF e o papel que a imprensa poderá desempenhar para que o povo participe da escolha que será feita formalmente pelo presidente da República.

Notável saber

Uma das inovações de maior relevância no quadro político-social brasileiro deste início do século 21 é a ampliação da influência do Poder Judiciário. Um dos reflexos dessa inovação é o aumento considerável da presença do Judiciário nas notícias e nos comentários da imprensa. A par de alguns aspectos positivos, essa exposição maior do Judiciário tem revelado que ele tem deficiências de organização e funcionamento que precisam ser seriamente enfrentadas; e uma delas, com grave reflexo em decisões muito relevantes do Supremo Tribunal, é o processo de escolha de seus membros, que dá margem à existência de dúvidas sobre os verdadeiros motivos que levaram à escolha de um ou outro ministro.
Alguns acontecimentos recentes são bem ilustrativos dessas distorções e de como elas são tratadas pela imprensa.
Antes de tudo, no que diz respeito especificamente à cobertura da imprensa, é oportuno observar que na divulgação do que acontece no Supremo Tribunal Federal, nos comentários e nas informações sobre o pensamento e a posição dos ministros, a imprensa vem adotando o mesmo tratamento utilizado para noticiar e comentar fatos referentes ao jogo político protagonizado por membros do Legislativo ou do Executivo. Isso, precisamente, vem acontecendo agora com relação à escolha de um novo membro para o STF, em decorrência da aposentadoria do ministro Eros Grau. Assim, por exemplo, foram divulgadas especulações, sem a indicação de qualquer fundamento, sugerindo que já estariam definidos dois candidatos, um "técnico" e um "político", oscilando o presidente da República entre essas duas opções.
O dado fundamental, que vem sendo omitido, é que nos segmentos da sociedade brasileira mais preocupados com a efetivação dos direitos e deveres consagrados na Constituição existe consenso no sentido de que o processo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal deverá ser substancialmente modificado, para dar maior representatividade e legitimidade democrática aos seus integrantes.
Lamentavelmente, a imprensa vem deixando passar a oportunidade de abrir um amplo e sério debate sobre os critérios para escolha dos ministros do STF. A atual Constituição reproduziu, com pequena alteração, o que já dispunha a primeira Constituição republicana brasileira, de 1891, que determinava a escolha entre "cidadãos de notável saber e reputação". Nos termos da Constituição de 1988, os membros do STF serão nomeados pelo presidente da República com prévia aprovação do Senado, dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Valores éticos

O reconhecimento da insuficiência desses critérios, sobretudo em vista do aumento da influência do Judiciário nos últimos tempos, tem sido praticamente unânime entre os conhecedores do desempenho do Supremo Tribunal Federal, estando em discussão várias propostas de adoção de novos parâmetros para escolha de seus integrantes. Já surgiram inúmeras sugestões de aperfeiçoamento do processo de escolha, considerando a experiência acumulada e as novas realidades.
Foi precisamente nessa linha que a Associação dos Magistrados Brasileiros formulou Proposta de Emenda Constitucional (PEC 434), que está em tramitação no Congresso Nacional. A par disso, e independente de reforma constitucional, existe uma intensa movimentação, com a participação de pessoas e entidades com larga experiência na defesa do Direito e da Justiça, propondo que seja dada ao povo, sobretudo à comunidade jurídica e aos que atuam visando a construção de uma sociedade justa e democrática, a possibilidade de influir na escolha do novo ministro do Supremo Tribunal Federal.
Pessoas e entidades de todas as partes do Brasil estão realizando reuniões e publicando manifestos – e isso tudo tem sido ignorado pela imprensa. Nessa movimentação tem havido, inclusive, a lembrança de alguns nomes que reforçariam o compromisso do STF com os fundamentos humanistas da Constituição. Assim, tem sido lembrado com muita ênfase o juiz federal e professor da PUC de São Paulo Sílvio Luiz Ferreira da Rocha, figura notável pela cultura jurídica, pela sensibilidade social e pela comprovada imparcialidade e independência. Outro nome de grande prestígio é o do professor da Universidade Federal do Paraná Luiz Edson Fachin, eminente civilista com amplos e sólidos conhecimentos de Direito Público e atento à realidade social. Tem sido também muito enfatizado o nome do constitucionalista e advogado Luis Roberto Barroso, advogado público com grande experiência nos tribunais superiores e corajoso defensor dos direitos humanos. Além de outros nomes que poderiam ser lembrados, aí estão três figuras representativas dos mais altos valores éticos e jurídicos do povo brasileiro, que o presidente da República deverá considerar.

Atitude inspiradora

Em síntese, existe consenso no sentido de que o processo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal deverá ser substancialmente modificado, para dar maior legitimidade democrática aos seus integrantes e maior aproximação daquela Alta Corte com a sociedade.
Uma hipótese que poderia ser considerada agora pelo presidente da República, para o preenchimento da vaga resultante da saída do ministro Eros Grau, seria a realização de uma consulta de âmbito nacional, dando-se às instituições diretamente ligadas às atividades jurídicas – como os tribunais, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados e as entidades associativas dessas áreas – a oportunidade de sugerirem nomes. Entre os três nomes que recebessem maior número de indicações o presidente da República escolheria um deles e o submeteria à aprovação do Congresso Nacional.
Obviamente, não haverá tempo para uma discussão aprofundada do assunto antes do preenchimento da vaga que será aberta agora, mas se a imprensa der ênfase ao problema, isso certamente influirá para que haja maior cuidado do presidente da República. Além disso, tal atitude deverá ser inspiradora do início de um amplo debate objetivando a atualização dos critérios para escolha dos futuros membros do Supremo Tribunal Federal, a fim de que a composição da Suprema Corte seja o reflexo dos valores éticos e jurídicos do povo brasileiro

sábado, 7 de agosto de 2010

Jornada de fundação do Núcleo de Direito Processual Penal da UFPR (NPP)

Clara Maria Roman Borges*

Acaba-se de criar, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, o Núcleo de Direito Processual Penal (NPP), por iniciativa do Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e da Profª Clara Maria Roman Borges.
O objetivo é desenvolver pesquisas sobre temas de direito processual penal tomando como referência um viés crítico e democrático vinculado à Constituição da República.
No dia 04 de agosto ocorreu a primeira reunião do NPP. Ele congrega professores de Direito Penal e Processual Penal das várias Faculdades de Curitiba, mestre e doutores, bem como alunos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, assim como profissionais das carreiras jurídicas. Busca-se, por evidente, uma maior integração, tomando-se por referência a universidade pública e seu papel junto à comunidade.
Na primeira reunião estavam presentes Adriano Bretas, Aline Guidalli Pilati, André Ribeiro Giamberardino, Bruna Amatuzzi, Érica de Oliveira Hartmann, Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha Jr., Jefferson Augusto de Paula, Leandro Gornicki Nunes, Luiz Antonio Câmara, Maicon Guedes, Marco Aurélio Nunes da Silveira, Maurício Stegemann Dieter, Priscilla Placha Sá, Maria Francisca Accioly, Renata Ceschin Melfi de Macedo, Rui Dissenha e Sylvio Lourenço da Silveira Filho.
Neste momento inicial, o Núcleo se reunirá semanalmente e terá como tarefa estudar a reforma do Código de Processo Penal gestada pelo PLS nº 156/09 que está em tramitação no Senado Federal. A primeira preocupação dos pesquisadores será debater as mudanças legislativas propostas pelo referido projeto, bem como as emendas apresentadas pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e outras propostas. Tal discussão tem por finalidade provocar a reflexão sobre o potencial da nova legislação para promover a prometida constitucionalização do direito processual penal brasileiro, bem como sobre possíveis correções que podem aproximá-la ainda mais deste objetivo.
É preciso ressaltar que parte deste grupo do NPP está dando continuidade a uma pesquisa iniciada há três anos, no âmbito de um PROCAD (Projeto de pesquisa financiado pela CAPES), desenvolvido em conjunto pelos Programas de Pós-graduação em Direito da UFPR e da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Ao longo destes anos reuniões foram realizadas no Rio de Janeiro e em Curitiba para discutir a reforma do CPP, o que demonstra a maturidade dos pesquisadores no estudo do tema, algo que pode ser conferido no livro O Novo Processo Penal à Luz da Constituição (Análise Crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal), da Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010.

* Mestre e Doutora em Direito Processual Penal pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Professora de Direito Processual Penal do Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil.

O Burgues em Estado Puro...

“Quem tem agora 50, 60 anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais.” Assim respondia Massimo Borghesi, professor titular de Filosofia da Universidade Urbaniana de Roma, à pergunta sobre quais motivos levavam a juventude europeia atual ao individualismo e aburguesamento sem precedentes. Destacava como causa a ausência de ideais transmitidos aos jovens, devido ao comportamento de professores universitários, que tinham sido os aguerridos combatentes dos descalabros sociais dos anos 1960, mas agora, descrentes da praxis marxista, aderiram à ideia do “burguês em estado puro” no conceito de Augusto Del Noce.
Os herdeiros da massa falida da práxis marxista amargam as consequências mais negativas: a decepção e a frustração. Imaginava-se que a solução dos problemas sociais proviria da luta de classes, não obstante, a própria praxis, a atuação histórica, demonstrou a falsidade dessa ideologia, evidenciada pela ruína do comunismo e o desabamento da União Soviética.
A crença nesse sistema, como única solução, levou a que muitos dos seus devotos concluíssem que “se não há mais nada que valha a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final de contas, que somente permanece a ideia do ‘burguês em estado puro’, aquele que não tem mais nenhum ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral”.
Explica-se esse estado de decepção, para os que acreditam que todo e qualquer ideal é ideologia e portanto o disfarce dos interesses de classe. Para a geração desse credo, hoje na casa dos 50 ou 60 anos, a solução seria a da transformação social radical pela luta de classes. Com a comprovação do erro marxista, em vez de se proporem a um novo modo de pensar, e uma reforma comportamental, acabaram pensando que não há mais nada em que acreditar. Propagou-se “uma espécie de cinismo em massa”, definido por Augusto Del Noce como a do “burguês em estado puro”. Caracterizado pela falta de valores vivenciais e apenas a busca da satisfação das necessidades mais imediatas. “Divirta-se, goze a vida e enriqueça.”
O meio universitário brasileiro também sofre dessa mesma enfermidade. No entanto, o que fazer para reverter esse estado de apatia moral? Pode-se propor como pauta, na missão da universidade, como queria Jorge Lacerda, que o estudante aprenda, “acima de todos os misteres, o mister de Homem”. Nisso se insere a responsabilidade educativa, porquanto todo professor pode ser, além de transmissor ou mediador do conhecimento, um construtor e inspirador de valores morais. Massimo salienta que “a maneira como se transmite a matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina”.
A educação não se pode reduzir à mera atividade informativa, pois é preciso conectar cada disciplina com a vida, com a realidade em que será aplicada, relacionada e compreendida. Essa interação, que abarca a postura do universitário diante da realidade, possibilita a sua inserção numa dimensão que tem consequências morais, éticas e religiosas.
Tornou-se uma banalidade repetir a frase: “A nossa sociedade está em crise de valores”, isso porque os valores somente adquirem realidade à medida que são incorporados na vida do professor, do médico, do político, do jornalista, do advogado etc. A crise está, sobretudo, na prática dos valores éticos no dia a dia dos profissionais, e mais especialmente, de acordo com Massimo, na figura do médico, do professor e do sacerdote, porquanto eram “as principais figuras sociais que encarnavam os ideais”.
A responsabilidade educativa exige dos educadores o combate ao cinismo do “burguês em estado puro”, por meio da vivência das virtudes em cada trabalho, em três dimensões: na objetiva, que se caracteriza pelo trabalho bem feito; na subjetiva, pelo desenvolvimento das virtudes pessoais ao fazer o bem e a obra bem feita e, por fim, na dimensão social, pela contribuição eficaz ao bem comum.

* Paulo Sertek, doutor em Educação pela UFPR, é professor da FAE Centro Universitário e autor dos livros: Responsabilidade Social e Competência Interpessoal, Empreendedorismo e Administração e Planejamento Estratégico. paulo-sertek@uol.com.br.

FONTE: Jornal Gazeta do Povo, Curitiba, 6 de agosto de 2010, coluna Opinião.

'Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito'

Eros Roberto Grau deixou ontem a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) convencido de que a Lei da Ficha Limpa põe "em risco" o Estado de Direito. Ele acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ignorar o princípio da irretroatividade das leis. "Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional."

Para Eros Grau, o que é ficha limpa?
"Ficha limpa" é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras.

Políticos corruptos não são uma ameaça aos cofres públicos e ao estado de direito?
Sim, sem nenhuma dúvida. Políticos corruptos pervertem, são terrivelmente nocivos. Mas só podemos afirmar que este ou aquele político é corrupto após o trânsito em julgado, em relação a ele, de sentença penal condenatória. Sujeitá-los a qualquer pena antes disso, como está na Lei Complementar 135 (Ficha Limpa), é colocar em risco o estado de direito. É isto que me põe medo.

O que está em jogo não é a moralidade pública?
Sim, é a moralidade pública. Mas a moralidade pública é moralidade segundo os padrões e limites do estado de direito. Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para impedir isso existe o direito. Sem a segurança instalada pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de seus pressupostos, no estado de direito, a presunção de não culpabilidade.

A profusão de liminares concedidas a candidatos, inclusive pelo Supremo, não confunde o eleitor?
Creio que não. Juízes independentes não temem tomar decisões impopulares. Não importa que a opinião publicada pela imprensa não as aprove, desde que elas sejam adequadas à Constituição. O juiz que decide segundo o gosto da mídia não honra seu ofício. De mais a mais, eleitor não é imbecil. Não se pode negar a ele o direito de escolher o candidato que deseja eleger.

Muitos partidos registraram centenas de candidaturas mesmo sabendo que elas poderiam ser enquadradas na Lei 135/2010, que barra políticos condenados por improbidade ou crime. Não lhe parece que os partidos estão claramente atropelando a Lei da Ficha Limpa, esperando as bênçãos do Judiciário?
Não, certamente. O Judiciário não existe para abençoar, mas para aplicar o direito e a Constituição. Muito pior do que corrupto seria um juiz, medroso, que abençoasse. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional.

Como aguardar pelo trânsito em julgado se na esmagadora maioria das ações ele é inatingível?
O trânsito em julgado não é inatingível. Pode ser demorado, mas as garantias e as liberdades públicas exigem que os ritos processuais sejam rigorosamente observados.

A Lei da Ficha Limpa é resultado de grande apelo popular ao qual o Congresso se curvou. O interesse público não é o mais importante?
Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.

Não teme que a Justiça decepcione o País?
Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.

O senhor teme realmente uma escalada contra a democracia?
Temo, seriamente, de verdade. O perecimento das democracias começa assim. Estamos correndo sérios riscos. A escalada contra ela castra primeiro os direitos políticos, em seguida as garantias de liberdade. Pode estar começando, entre nós, com essa lei. A seguir, por conta dessa ou daquela moralidade, virá a censura das canções, do teatro. Depois de amanhã, se o Judiciário não der um basta a essa insensatez, os livros estarão sendo queimados, pode crer.

Por que o Supremo Tribunal Federal nunca, ou raramente, condena gestores públicos acusados por improbidade ou peculato?
Porque entendeu, inúmeras vezes, que não havia fundamentos ou provas para condenar.
Que críticas o senhor faz à forma do Judiciário decidir?
As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo.

Isso tem acontecido?
Lógico. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.

O senhor tem coragem de votar em um político com ficha suja?
Entendido que "ficha-suja" é unicamente quem tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado, certamente não votarei em um deles. Importante, no entanto, é que eu possa exercer o direito de votar com absoluta liberdade, inclusive para votar em quem não deva.

O senhor está deixando o STF. Retoma a advocacia? Aceitará como cliente de sua banca um folha corrida?
Terei mais tempo para ler e estudar. Escrever também, fazer literatura. E trabalhar com o direito. Para defender quem tenha algum direito a reclamar, desde que eu me convença de que esse direito seja legítimo. Ainda que se o chame de "folha corrida".

E para Brasília o senhor pretende voltar?
Brasília é uma cidade afogada, seca, onde você não é uma pessoa, você é um cargo.

FONTE: Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 03 de agosto de 2010. (Entrevistadores: Fausto Macedo e Felipe Recondo).

domingo, 1 de agosto de 2010

Violência Policial no Brasil Neoliberal

Há risco de o erro virar regra. Primeiro, o aceno ordenando parar. Distraído, o técnico em manutenção Francisco das Chagas de Oliveira, que voltava de um trabalho na companhia do filho no domingo passado, continuou a guiar a moto. Não ter acatado o sinal do policial militar foi o suficiente para que o soldado sacasse uma arma, em plena rua de Fortaleza (CE), e atirasse na nuca de Bruce Cristian, que estava na garupa.
A morte do garoto de 14 anos, provocada por quem é pago pelo Estado para oferecer proteção, não é caso isolado. Quase 400 pessoas foram assassinadas no Brasil pelas polícias Militar e Civil em 2008, base mais atualizada do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. Os óbitos são classificados como “intervenção legal”. Ocorreram enquanto o policial tentava deter quem infringia a lei. Rio de Janeiro e São Paulo respondem juntos por 323 dos 398 óbitos notificados em 2008.
A falta de preparo dos agentes, a ausência de punição e a nomenclatura com que as mortes são registradas são o que mais contribui para a impunidade, dizem especialistas. “Temos nesse balanço casos de execução nomeados como intervenção legal”, critica Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global.
Embora o policial cearense que matou Bruce Cristian tenha dito, em depoimento, ter se tratado de um disparo acidental, a corporação do Estado reconheceu a operação como “desastrosa”. Polícias Civil e Militar tiraram a vida de quase 400 brasileiros em 2008.
Fonte: Jornal A Notícia, n. 843, Joinville, 1 de agosto de 2010, coluna AN País, p. 15.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Chomsky e as 10 estratégias de manipulação midiática

1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')”.

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES

Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê?“Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.

6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossíveis para o alcance das classes inferiores (ver ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto…

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Die Strafrecht Welle

O presente texto tem por objetivo analisar a política penal brasileira, indicando tópicos comuns ao sistema autocrático que surge no filme Die Welle (1), onde Rainer Wegner, um professor de ensino médio, devido ao desinteresse dos seus alunos no estudo da sua matéria, propõe um experimento que explique na prática os mecanismos do fascismo e do poder. Neste trabalho de cinesofia (Warat) se quer mostrar a funcionalidade das políticas penais desenvolvidas no Brasil para a instalação de um regime político fascista.

Já no início do filme é possível constatar a situação típica da modernidade líquida (Bauman) onde os jovens – drogados – não vêem qualquer perspectiva de melhoria nas suas vidas. São pessoas fulminadas por um elevado grau de ceticismo e de cinismo, germinados na globalização neoliberal que a todos “coisifica”, além de causar grande desemprego e injustiça social, algo idêntico à realidade brasileira.

Nesse quadro social, surge a figura mítica do líder apoiado no lema “disciplina é poder”. Desse modo, havendo grande insatisfação social, a ideologia, a disciplina e o controle social se tornam os auspícios dos regimes totalitários. Com discursos inflamados, governantes fascistas conquistam rapidamente a simpatia do povo, que busca “o pai da horda” (Freud). A propósito, não raro, alunos admiram muito aqueles professores “rigorosos” – autoritários –, e, não por acaso, muitas pessoas sentem saudade de Getúlio Vargas, apelidado de “o Pai dos Pobres”, ou do regime militar instalado após o golpe de 1964. E, dentro dessa lógica, são proferidos discursos políticos que conquistam o eleitorado inculto e elegem “hitlers”, embora muitos nem conheçam a simetria das suas palavras com as do líder nazista.

Mas, isso não é tudo. É necessário que seja criado um laço social. Essa união entre as pessoas de uma sociedade depende da eleição de um inimigo. Normalmente, o inimigo é o estrangeiro (Schmitt). Mas, como ocorre no Brasil, pode ser o “outsider” (Becker), não consumidor, cuja força de trabalho não interessa à economia neoliberal, de modo que o biopoder (Foucault), rotineiramente, a destrói por meio de ações policiais, “banalizando o mal” (Arendt). É preciso esclarecer que os movimentos sociais que buscam transformar paradigmas advêm da união de pessoas. Mas, essa adesão ao movimento social, que acabará lhe dando coesão, somente será legítima se for voluntária, ou seja, fruto de um processo de desalienação política.

Assim, uma vez escolhido(s) o(s) inimigo(s) e atado o laço social contra ele(s), instala-se uma democracia formal, onde a minoria não possui qualquer relevância política e deve se submeter à vontade da maioria, se quiser sobreviver. A chamada razão de estado é invocada para justificar as violações aos direitos e garantias individuais e coletivas previstas na Constituição. Essa técnica völkisch consiste em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo da vez (Zaffaroni). Porém, tudo isso não passa de um “jogo-de-cena” para esconder os objetivos reais do poder hegemônico (Gramsci) ou classe hegemônica, cuja estratégia de ação envolve, inclusive, aproveitar-se da fascinação alienante do líder ao colocar a coroa ou faixa que representa esse poder.

Não há dúvida que o exercício de poder fascina, mormente aqueles mais débeis que buscam nessa projeção política a redenção dos mais íntimos recalques. Por isso, a criação de mecanismos de controle do poder é algo inexorável em uma democracia, antes que seja tarde. Do contrário, a autocracia, e o fascismo que dela decorre, tem maiores chances de se instalar em qualquer sociedade, sendo a violência do sistema punitivo o ápice e o fulcro dessa forma de governo.

Portanto, para conter “a onda do Direito Penal”, é fundamental que se lute contra as violações da Constituição de 1988. Essa luta depende de atores sociais (líderes emancipados) dispostos a levantar suas vozes contra as propostas autoritárias que constantemente são emanadas do nosso Congresso Nacional, ainda mais quando se percebe que as tecnologias de massa (celulares, internet e televisão) facilitam a disseminação de idéias fascistas.

Finalmente, a obra cinematográfica demonstra a importância dos professores na construção da democracia e do seu poder de influenciar (positivamente ou negativamente) os rumos da sociedade que estão inseridos, de modo que o desenvolvimento da docência exige constante aprofundamento teórico e prático, não podendo ser aceita uma metodologia pedagógica não vinculada ao materialismo dialético (Marx) e à filosofia da libertação (Dussel).

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1 GANSEL, Dennis. Die Welle. [Filme-vídeo]. Direção de Dennis Gansel. Alemanha. 2008. DVD, 101 min. color. son.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Canoa (Paulo Freire)

Narra-se que, num largo rio, de difícil travessia, havia um barqueiro que atravessava as pessoas de um lado para outro.
Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora.
Como quem gosta de falar muito e com ar altivo, o advogado pergunta ao barqueiro:
Companheiro, você entende de leis?
Não. Responde o barqueiro.
E o advogado compadecido acrescenta:
É pena... Você perdeu metade de sua vida!
A professora, então, muito social, adentra na conversa:
Seu barqueiro, você sabe ler e escrever?
Também não. Responde o remador.
Que pena! – condói-se a mestra. Você perdeu metade de sua vida!
Nisso, uma onda muito forte vira o barco
O canoeiro, preocupado, pergunta:
Vocês dois sabem nadar?
Não! Responderam eles rapidamente, em conjunto.
Então é pena! – conclui o barqueiro – vocês perderam toda sua vida!

domingo, 27 de junho de 2010

Notícias de Uma Guerra Particular

O documentário “Notícias de Uma Guerra Particular”, dirigido por Kátia Lund e João Moreira Salles, embora produzido no ano de 1999, irá tratar da subcidadania ainda existente em pontos da cidade do Rio de Janeiro/RJ, a partir da gravíssima questão social do tráfico de entorpecentes, mostrando a visão dos agentes envolvidos no problema e a guerra insana desenvolvida por intermédio de ações estatais nesse particular.
A partir da década de 80 do século passado, o tráfico de drogas se torna uma atividade ilícita de grande proporção, e, com ele, o número de homicídios. Cerca de 90% das mortes no Rio de Janeiro decorrem de ferimento por armas de grosso calibre, evidenciando que a situação é de guerra.
Dentro da lógica da seletividade, a criminalização secundária se concentra nos morros da referida cidade, onde a população vive em condição de subcidadania. Os traficantes são jovens, negros e pobres. Os policiais possuem perfil semelhante, evidenciando a injustiça de um modelo repressivo que, historicamente, não possui qualquer legitimidade. Afinal, a participação nesse tipo de criminalidade e os condicionamentos que levam um jovem a entrar nos quadros da Polícia Militar são fruto de modos de produção (escravista e capitalista) cujas contradições insuperáveis causam grande exclusão social.
Um fator importantíssimo desvelado no documentário é a origem do movimento conhecido como “Comando Vermelho”. Foi a partir do aprisionamento de agentes considerados subversivos pelo regime militar, instalado após o golpe de 1964, juntamente com os traficantes, que estes observaram os princípios altruístas das ações daqueles, culminando em uma instituição criminalizada. O projeto original dos traficantes que fundaram o Comando Vermelho era ocupar as lacunas deixadas pelo poder público e seu lema era “paz, justiça e liberdade”, curiosamente algo próximo de “igualdade, fraternidade e liberdade”, lema da revolução burguesa. É possível afirmar que, a exemplo do que ocorreu no Holocausto, onde judeus se viram obrigados a ir para Israel e um grande conflito com os palestinos se instalou, a bestialidade do regime militar tirano, defensor de políticas imperialistas, trouxe o legado da miséria e da organização dos sujeitos criminalizados no “Comando Vermelho”.
Nessa guerra particular são construídos inimigos e matar se torna uma “vitória” para os “inimigos” envolvidos, eis que assim – e somente assim – eles imaginam atingir a condição de sujeito, e não simples objeto da estrutura social. E a situação ganha um componente especial: o consumismo, essa mola propulsora do capital. O modo de produção capitalista é excludente e para conter os excluídos a ferramenta é a repressão policial, cuja atividade violenta viola os Direitos Humanos (paradoxalmente, uma criação da própria burguesia capitalista). A sanha repressora e punitiva só é desejada pelos sujeitos que representam o poder hegemônico em detrimento dos outsiders (Becker). Os movimentos criminalizados vinculados ao narcotráfico são, sem dúvida, conseqüência da proibição (criminalização primária) que torna o lucro dessa atividade maior, e da corrupção de agentes públicos e policiais que, em muitos casos, são os fornecedores das armas dos traficantes.
Em última instância, pode-se sintetizar o problema e falar que tudo é conseqüência do modo de produção capitalista, que promove exclusão, embora exija que todos sejam “bons burgueses”, consumidores e disciplinados para o mercado de trabalho. Porém, aqueles que representam o excesso de mão-de-obra dentro da lógica capitalista não possuem qualquer valor e o Estado exerce uma biopolítica que pensa ser legítima a destruição da vida desses sujeitos. Há grande alienação por parte da sociedade e um racionalismo imbecil permite que os agentes dos três Poderes prossigam nessa prática odiosa, com a presunção de estarem “salvando a humanidade”.
Enquanto o Estado elimina vidas – quando o seu poder disciplinar normalizador é ineficaz – os titulares do poder hegemônico consomem tudo que é possível para ludibriar a infelicidade desse sistema social, orando e pedindo aos seus deuses para que não venham a ser vítimas da violência líquida que não escolhe classes sociais para causar os seus danos. Instalou-se a cegueira...
É o preço do cinismo, do ceticismo, da hipocrisia e da mais-valia!

terça-feira, 22 de junho de 2010

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. EXAME. ALCOOLEMIA.

Antes da reforma promovida pela Lei n. 11.705/2008, o art. 306 do CTB não especificava qualquer gradação de alcoolemia necessária à configuração do delito de embriaguez ao volante, mas exigia que houvesse a condução anormal do veículo ou a exposição a dano potencial. Assim, a prova poderia ser produzida pela conjugação da intensidade da embriaguez (se visualmente perceptível ou não) com a condução destoante do veículo. Dessarte, era possível proceder-se ao exame de corpo de delito indireto ou supletivo ou, ainda, à prova testemunhal quando impossibilitado o exame direto. Contudo, a Lei n. 11.705/2008, ao dar nova redação ao citado artigo do CTB, inovou quando, além de excluir a necessidade de exposição a dano potencial, determinou a quantidade mínima de álcool no sangue (seis decigramas por litro de sangue) para configurar o delito, o que se tornou componente fundamental da figura típica, uma elementar objetiva do tipo penal. Com isso, acabou por especificar, também, o meio de prova admissível, pois não se poderia mais presumir a alcoolemia. Veio a lume, então, o Dec. n. 6.488/2008, que especificou as duas maneiras de comprovação: o exame de sangue e o teste mediante etilômetro (“bafômetro”). Conclui-se, então, que a falta dessa comprovação pelos indicados meios técnicos impossibilita precisar a dosagem de álcool no sangue, o que inviabiliza a necessária adequação típica e a própria persecução penal. É tormentoso ao juiz deparar-se com essa falha legislativa, mas ele deve sujeitar-se à lei, quanto mais na seara penal, regida, sobretudo, pela estrita legalidade e tipicidade. Anote-se que nosso sistema repudia a imposição de o indivíduo produzir prova contra si mesmo (autoincriminar-se), daí não haver, também, a obrigação de submissão ao exame de sangue e ao teste do “bafômetro”. Com esse entendimento, a Turma concedeu a ordem de habeas corpus para trancar a ação penal. Precedente citado do STF: HC 100.472-DF, DJe 10/9/2009. HC 166.377-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 10/6/2010.

TRANSAÇÃO PENAL. DESCUMPRIMENTO

Faz coisa julgada formal e material a sentença que homologa a aplicação de pena restritiva de direitos decorrente de transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/1995). Assim, transcorrido in albis o prazo recursal e sobrevindo descumprimento do acordo, mostra-se inviável restabelecer a persecução penal. Precedentes citados: HC 91.054-RJ, DJe 19/4/2010; AgRg no Ag 1.131.076-MT, DJe 8/6/2009; HC 33.487-SP, DJ 1º/7/2004, e REsp 226.570-SP, DJ 22/11/2004. HC 90.126-MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 10/6/2010.

Documentação apreendida em escritório de advocacia não serve de prova contra cliente

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para excluir de investigação policial os documentos apreendidos em escritório de advocacia do qual os suspeitos eram ex-clientes. A maioria dos integrantes da turma julgadora entendeu que a apreensão dos documentos pela Polícia Federal foi ilícita porque, no momento em que aconteceu, a empresa suspeita e seu representante ainda não estavam sendo investigados formalmente, não havendo até então nenhuma informação contra eles. A legislação brasileira protege o sigilo na relação do advogado com seus clientes e considera o escritório inviolável, só admitindo busca e apreensão no local quando o próprio profissional é suspeito de crime. Ainda assim, nenhuma informação sobre clientes poderia ser utilizada, em respeito à preservação do sigilo profissional, a não ser que tais clientes também fossem investigados pelo mesmo crime atribuído ao advogado. A apreensão no escritório de advocacia Oliveira Neves foi autorizada pela Justiça e executada pela Polícia Federal no âmbito da operação Monte Éden, deflagrada em 2005 para investigar crimes de evasão de divisas e lavagem de dinheiro. As atividades criminosas teriam sido praticadas por meio de empresas fictícias criadas em nome de “laranjas” no Uruguai e envolveriam membros do escritório de advocacia e alguns de seus clientes. Durante a busca, os agentes descobriram documentos que indicariam o envolvimento da empresa Avícola Felipe S.A. e de seu representante legal nos mesmos crimes investigados pela operação. Até aquele momento, porém, nada havia contra eles, tanto que sequer foram mencionados na ordem de busca e apreensão. Os agentes da Polícia Federal em São Paulo encaminharam à delegacia de Maringá (PR) os documentos apreendidos no escritório de advocacia, os quais motivaram a abertura de inquérito perante a 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba. O empresário suspeito contestou o uso de tais documentos, invocando a Constituição – que considera inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos – e o Estatuto da Advocacia – que garante a inviolabilidade do escritório profissional.
Notícia vinculada ao seguinte processo: HC n. 149.008/PR, rel. p/ o acórdão Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 16/03/2010.

HC sustenta “adequação social” para pedir absolvição de donos de casa de prostituição

Sob alegação de que “a tolerância social e ausência de dano ou de perigo de dano a valores da comunidade tornam atípica a conduta de manter casa de prostituição”, a Defensoria Pública da União (DPU) pede liminar no Habeas Corpus (HC) 104467, para manter a absolvição de A.F.M. e J.S., donos de uma casa de shows na cidade praiana de Cidreira (RS), denunciados pelo crime previsto no artigo 229 do Código Penal (CP).
Os donos do estabelecimento foram absolvidos em primeiro grau e, também, pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS), mas o Ministério Público estadual (MPE) recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou ao juiz de primeiro grau que redija outra sentença. Recurso de agravo regimental interposto pela defesa dos empresários contra essa decisão teve provimento negado pela Corte Superior.
No HC impetrado no Supremo, a DPU pede a suspensão, em caráter liminar, da decisão do STJ até decisão final do HC. No mérito, pede que seja confirmada essa decisão.
Prós e contras
Ao absolver A.F.M. e J.S., o juiz de primeiro grau fundamentou-se no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual o juiz pode absolver o réu, quando o fato de que ele é acusado não constituir infração penal.
O juiz explicitou seu entendimento ao observar que, “embora tipificada, a conduta dos réus, quando envolve prostituição de maiores, vem sendo descriminalizada pela jurisprudência, em virtude da liberação de costumes”.
No mesmo sentido se pronunciou o TJ-RS. “Inviável a condenação dos acusados por esse crime, pois, conforme entendimento jurisprudencial, viável a aplicação do princípio da adequação social, que torna o fato materialmente atípico”, observou o tribunal, em seu acórdão.
“Assim, embora certa a autoria do delito, a absolvição dos réus deve ser mantida, pois o fato não ofende a moralidade pública, tratando-se de conduta aceita pela sociedade atual, inexistindo, portanto, justificativa para manter a criminalização dessa situação”.
Ao determinar a prolação de nova sentença, o STJ lembrou que aquela Corte “firmou compreensão de que a tolerância pela sociedade ou o desuso não geram a atipicidade da conduta relativa à prática do crime do artigo 229 do Código Penal”.
Adequação social
Em defesa dos donos do estabelecimento, a DPU invoca o princípio da adequação social, concebido pelo jurista e filósofo do direito alemão Hans Welzel. Os defensores públicos adotam o entendimento de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social.
“Realce-se ser inegável que a sociedade evoluiu, sobremaneira, no que se refere ao pudor e à quebra de paradigmas atinentes à conduta sexual”, afirma a DPU. “Noutras palavras, verifica-se um menor nível de censura relacionado à existência de casas de prostituição. Em síntese, o senso comum indica que o corpo social, majoritariamente, tolera a existência delas”.
A Defensoria destaca, porém, que desse entendimento estão nitidamente excepcionadas, em jurisprudência firmada pelo STJ, as hipótese de exploração sexual de crianças e adolescentes (artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), o rufianismo (artigo 230 do CP) e o favorecimento da prostituição (artigo 228 do CPP), “em relação aos quais a sociedade expressa total repugnância”.
Concluindo suas alegações, a DPU sustenta que, “embora ainda figure no Código Penal vigente – este dos idos de 1940 –, a conduta a que se refere o seu artigo 229 (casa de prostituição) deixou de ser vista à conta de delituosa. E deixou de sê-lo porque se trata de um conceito moral reconhecidamente ultrapassado que já não tem mais como se sustentar nos dias atuais”.
O HC 104467 tem como relatora a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Alternativas para a prisão preventiva e a monitoração eletrônica: avanço ou retrocesso em termos de garantia à liberdade?

Leandro Gornicki Nunes*
Indubitavelmente, a busca de soluções alternativas para a prisão preventiva é algo imperioso, mormente nos dias atuais, aonde o instituto vem sendo utilizado como forma de antecipação da condenação, embora os riscos de se causar danos irreparáveis a inocentes sejam indiscutíveis. Tudo isso, fruto da enfadonha teoria do Direito Penal do inimigo, de Gunther JAKOBS.
Como alternativa à prisão preventiva, alguns juristas vem defendendo a idéia de se utilizar tecnologias capazes de atingir os escopos oficialmente declarados do referido instituto de processo penal, sem a necessidade de encarcerar o acusado. Dentre as alternativas postas a lume, surge o monitoração eletrônica por meio de pulseiras ou braceletes.
O monitoração eletrônica ou vigilância eletrônica tem raiz nos Estados Unidos, e surgiu, em 1979, após sugestão do Juiz Jack Love, que idealizou um bracelete a ser utilizado nos presos, como forma de melhor vigia-los, e pediu a um engenheiro eletrônico que o desenvolvesse. [1] No ano de 1984, o monitoramento eletrônico foi implementado em Albuquerque, New México[2], vindo a ser usado, posteriormente, nos demais estados americanos, inclusive, em todas as fases do processo penal, como alternativa às prisões processuais.[3] Depois dos Estados Unidos, a idéia foi implementada no Reino Unido (1991), na Suécia (1994) e em outros países do continente europeu (Itália, Alemanha, Escócia, Andorra etc.).[4]
No Brasil, a Lei n. 12.258, de 15 de junho de 2010, alterou a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para prever a possibilidade de utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado nos casos em que especifica. Segundo a lei, "a ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução" (LEP, art. 122, parágrafo único). As hipóteses de monitoração eletrônica estão previstas no art. 146B, da LEP, e são: 1ª) quando o juiz autorizar a saída temporária no regime semiaberto; 2ª) quando o juiz determinar a prisão domiciliar. É dever do condenado cuidar do equipamento de monitoração eletrônica, sendo que o descumprimento das condições impostas implicará em regressão de regime, revogação da saída temporária ou da prisão domiciliar, ou, finalmente, simples advertência escrita (LEP, art. 146C). A monitoração eletrônica poderá ser revogada: I - quando se tornar desnecessária ou inadequada; II - se o acusado ou condenado violar os deveres a que estiver sujeito durante a sua vigência ou cometer falta grave (LEP, art. 146D). O monitoramento será feito por meio de uma tornozeleira ou pulseira.
Seguindo a tendência neoliberal, os aficionados pela visão economicista do Direito Penal, baseiam-se na redução dos custos para manter um preso dentro da cadeia desnecessariamente, pouco importando a questão de segurança pública, a humanização do sistema carcerário e os abusos que podem advir. O que importa é a redução de custos.
Segundo o professor Carlos Eduardo A. JAPIASSÚ, “a vigilância eletrônica afigura-se como uma alternativa interessante, já que recorre à tecnologia e à experiência comparada, considerando que já se existem experiências positivas em diversos países do mundo, sobretudo na América do Norte e na Europa Ocidental”[6]. E mais: “trata-se, pois, de medida inovadora, que busca atenuar os rigores da pena de prisão, consistindo em medida mais adequada à própria evolução do Direito Penal e um verdadeiro marco em matéria de execução penal”.[7]
Muito embora as palavras do professor Carlos Eduardo A. JAPIASSÚ sejam direcionadas à questão da execução penal, não há como deixar de considerá-las, também, no âmbito das prisões processuais, e fazer o seguinte questionamento: não se estaria, por meio do uso da vigilância eletrônica, contribuindo para a maximização do terror repressivo estatal, ao invés de combatê-lo e impedi-lo de violar os direitos fundamentais do cidadão? Além disso, a falência do sistema prisional justificaria a adoção desse paliativo?
É certo que a maioria das pessoas que estão presas preventivamente preferiria estar sob os efeitos da vigilância eletrônica do que mofando em um cárcere insalubre e lotado, típico do sistema prisional brasileiro. Mas, esse é o melhor caminho?
Com o emprego dessa tecnologia, como diz a professora Maria Lúcia KARAM, “o panóptico já não precisa se instalar em um lugar fechado, no interior dos muros da prisão, no interior da instituição total. O controle já pode estar por toda parte. A sociedade como um todo já pode ser a própria instituição total”.[8]
Por mais paradoxal que possa parecer o discurso daqueles que são contra a utilização do monitoramente eletrônico por meio de braceletes, pulseiras ou tornozeleiras, é notório que tal prática concretiza a sombria perspectiva do controle total do Estado sobre os indivíduos. Dessa forma, não se pode pensar a questão sob os efeitos do desespero de quem está preventivamente privado de sua liberdade, pois, nessa condição, qualquer esmola de liberdade dada ao sujeito é uma dádiva.
A questão é mais profunda e complexa do que os afoitos pragmáticos podem enxergar. Com efeito, lúcidas são as advertências da professora Maria Lúcia KARAM: “Os dominados pela enganosa publicidade, os assustados com os perigos da ‘sociedade de risco’, os ansiosos por segurança a qualquer preço, e, com eles, os aparentemente bem intencionados reformadores do sistema penal, não percebem os contornos da nova disciplina social, não percebem as sombrias perspectivas do controle na era digital, não percebem a nítida tendência expansionista do poder punitivo em nosso ‘pós-moderno’ mundo. Não percebem que a ‘pós-moderna’ diversificação dos mecanismos de controle não evita o sofrimento da prisão. Ao contrário, só expande o poder punitivo em seu caminho paralelo ao crescimento da pena de liberdade. [...] Não percebem que a conveniência com os ilegítimos e crescentes atentados à privacidade, que a previsão em diplomas legais e disseminada utilização de invasivos e insidiosos meios de busca de prova (quebra do sigilo de dados pessoais, interceptação de comunicações, escutas e filmagens ambientais) destinados a fazer do próprio acusado ou investigado instrumento de obtenção da ‘verdade’ sobre seus atos tornados criminosos, que o elogio ao monitoramento eletrônico, que a aceitação da onipresente vigilância e do espraiado controle legitimam e incentivam um desvirtuado uso das tecnologias que, se fazendo acessíveis na era digital, podem se tornar ulteriormente incontroláveis se esse desvirtuado uso não for confrontado e freado por leis efetivamente respeitadoras e eficazmente garantidoras dos direitos fundamentais do indivíduo, pelo compromisso com o pensamento liberal e libertário inspirador das declarações universais de direitos e das Constituições democráticas e por sua inafastável supremacia, pelo decisivo repúdio, atuante questionamento e concreta contenção de qualquer forma de expansão do poder punitivo, pela permanente afirmação, pelo atento cultivo e pala constante solidificação do desejo da liberdade”.[9]
Por melhor que possa ser a intenção daqueles que defendem o uso da tecnologia para atenuar os nefastos efeitos do cárcere na vida do cidadão, não é possível tolerar os abusos que, certamente, advêm do emprego desses meios tecnológicos, mormente em tempos de pânico social, quando, então, a debilitação do direito à privacidade é mais freqüente e tolerada pela sociedade.
Somando-se a desmedida expansão do poder punitivo estatal – fruto do medo – com a troca do desejo de liberdade pela ilusão da segurança, em breve, o que teremos é um Estado totalitário – se é que já não o temos – sem limites éticos em termos penais. E o pior: parafraseando a banda irlandesa U2, tudo será feito “in the name of love”. Isso é muito parecido com a proteção do “são sentimento do povo alemão”, que fundamentou um regime totalitário que culminou no Holocausto, cujas barbaridades são conhecidas por todos e, sempre que necessário, devem ser relembradas para não ficarmos em um “museu de grandes novidades”.
Se não quisermos ter o desprazer de ver nossos filhos recebendo um “código de barras” ao nascer, é bom (re)pensarmos sobre essas questões, pois, ao que tudo indica, o remédio será pior que a doença.
Notas:
[1] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. A crise do sistema penitenciário: a experiência da vigilância eletrônica. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, a. 14, n. 170, p. 2-3, jan. 2007.
[2] RONDINELLI, Vincenzo. “Tracking Humans: The Electronic Bracelet in a Modern World”, 1997, Criminal Lawyers Association Newletter, disponível em http://www.criminallawyers.ca/newslett/aug97/rondinelli.htm
[3] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Idem.
[4] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Idem.
[5] O projeto estipula a inserção do parágrafo primeiro do artigo 312 do Código Penal que passaria a vigorar com a seguinte redação: “§1º. Quando a prisão preventiva for decretada para assegurar a aplicação da lei penal, e havendo comprovação nos autos de efetivo risco de fuga do acusado, o juiz poderá, fundamentadamente, substituir a medida cautelar de prisão pela liberdade vigiada por monitoramento eletrônico”.
[6] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Idem.
[7] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Idem.
[8] KARAM, Maria Lúcia. Monitoramento eletrônico: a sociedade do controle. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, a. 14, n. 170, p. 4-5, jan. 2007.
[9] KARAM, Maria Lúcia. Idem.