sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Narciso no país das maravilhas, por Contardo Calligaris



A maioria dos objetos são drogas: satisfazem um anseio parecido com o do toxicômano

Esse é o subtítulo de um estudo publicado recentemente (2006) pela Routledge, "The Self Psychology of Addiction and its Treatment" (a psicologia-do-self da adicção e de seu tratamento). Os autores, Richard Ulman e Harry Paul, são psicanalistas (da psicologia do self, a escola de Heinz Kohut), terapeutas de toxicômanos e eles mesmos drogadictos em remissão. 
O estudo, embora estritamente clínico, propõe uma visão da toxicomania que, ao meu ver, vale como interpretação geral da modernidade. Explico. 
Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada um de nós se alimenta de duas fontes: 1) as aspirações, as normas e os brasões transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que temos uma missão na vida; 2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela vingue. 
Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um pode fazer função de pai ou de mãe). 
Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte. Por isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados, amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios. 
Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos "alguém" (que sempre significa "alguém muito especial") é o momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes. 
Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc. E, infelizmente, o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido. 
Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos? 
Quem lia as tiras de Charlie Brown, de Charles Schultz, deve se lembrar do cobertor que Linus carregava sempre consigo: quando as coisas não iam bem, ele agarrava o cobertor e chupava o dedo; era seu jeito de reencontrar, momentaneamente, a felicidade perdida. O cobertor de Linus é um exemplo perfeito do que D. W. Winnicott, um grande psicanalista, chamou de "objetos transicionais": são objetos inanimados, mas que representam um amor do qual não conseguimos ainda nos separar. 
Eles funcionam como o lápis entre os dentes do fumante que quer parar de fumar: não substitui o cigarro, mas, na luta para deixar o vício, oferece conforto nas crises de abstinência. Ou como a mamadeira da noite quando o desmame acabou há tempos, mas ainda bate, digamos assim, uma "nostalgia amorosa". 
À força de brincar com cobertores e chupetas, a gente deveria aprender a 1) dispensar cobertores e chupetas, 
2) lidar com a precariedade da presença e do amor dos outros. Mas não é tão simples assim, até porque, nessa tarefa, o mundo não nos ajuda. Narciso vive no país das maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a inveja de todos. E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios, charutos ou pacotes de férias. 
Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos "transicionais" que as representem? Os objetos do consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto. 
As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento. Mas, na verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve. 
Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois detalhes. 1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável que minha experiência afetiva seja miserável; 2) se espero a felicidade dos objetos, desaprendo a agir e a desejar. No próximo domingo é a primeira fase da Fuvest, e passei o ano dormindo no cursinho? Não é o caso de me desesperar, vou para o shopping comprar um sapato simplesmente "divino". 
Agora, falando sério, por que se opor à liberação das drogas? Afinal, a maioria dos objetos em venda livre satisfaz, no fundo, um anseio parecido com o do toxicômano. Relaxe e goze... 



FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2211200725.htm 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

TJSC - Direito Penal - Estupro de Vulnerável - Presunção Relativa de Violência - Atipicidade.


APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A, CAPUT DO CÓDIGO PENAL). CONJUNÇÃO CARNAL ENTRE VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS E ADOLESCENTE COM 18 ANOS. RELAÇÃO CONSENTIDA. ALEGAÇÃO, PELA MENOR, DE IDADE DIVERSA. CASO QUE NÃO PODE SER DRAGADO POR UMA ANÁLISE BUROCRÁTICA DOS PROTOCOLOS JURÍDICOS. PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE RELATIVIZADA E EXCEPCIONALMENTE AFASTADA. RECURSO DESPROVIDO (TJSC, Apelação Criminal n. 2012.059804-5, de Rio do Oeste, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Ricardo Roesler, v.u., j. 20/11/2012).

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

STF - Direito Penal - Pena Substitutiva - Tráfico de Drogas - Possibilidade.


O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Plenário Virtual, reconheceu repercussão geral da matéria tratada em um Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 663261) interposto pelo Ministério Público Federal (MPF), no qual se discute a vedação à substituição da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, conforme previsto na Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas). No mérito, também no Plenário Virtual, os ministros reafirmaram, por maioria, jurisprudência dominante da Corte firmada no julgamento do Habeas Corpus (HC) 97256, em que o STF declarou inconstitucionais dispositivos da Lei de Drogas que impedem pena alternativa.
No julgamento do HC, em setembro de 2010, por seis votos a quatro, os ministros decidiram que são inconstitucionais dispositivos da Lei 11.343/2006 que proíbem expressamente a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos (também conhecida como pena alternativa) para condenados por tráfico de drogas. O Plenário concluiu pela inconstitucionalidade da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do artigo 33, parágrafo 4º, bem como da expressão “vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”, constante do artigo 44, ambos da Lei 11.343/06.
Naquela ocasião, a determinação do STF não implicou a imediata soltura do condenado, limitando-se a remover o óbice legal, ficando a cargo do Juízo das execuções criminais o exame dos requisitos necessários para conversão da pena. A decisão, ao declarar incidentalmente a inconstitucionalidade dos dispositivos legais, valeu para o caso concreto em análise naquele habeas corpus, mas também fixou o entendimento da Corte sobre o tema.
A questão suscitada no presente recurso trata da constitucionalidade da vedação à conversão da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, prevista nos artigos 33, parágrafo 4º, e 44, caput, da Lei 11.343/2006. Para isso, o MPF apontava ofensa aos artigos 2º, 5º, inciso XLIII, e 52, inciso X, da Constituição Federal.
O autor do recurso afirmava que o Tribunal de origem conferiu ao condenado pela prática de crime equiparado a hediondo (tráfico de drogas) tratamento idêntico àqueles encarcerados em virtude do cometimento de infrações penais de menos gravidade. Sustentava, ainda, a plena eficácia da norma, razão pela qual considerava indevida a conversão da pena.
Provimento negado
A manisfestação do relator, ministro Luiz Fux, foi acompanhada pela maioria dos ministros, em votação no Plenário Virtual. Os ministros reconheceram a repercussão geral da matéria e, no mérito, negaram provimento ao recurso extraordinário para reafirmar a jurisprudência da Corte, por entenderem que a impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos ofende a garantia constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI, da CF/88).
“A lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo”, ressaltou o relator. Segundo ele, “é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória”.
O ministro Luiz Fux afirmou que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a “função retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal”. As demais penas, conforme o relator, “também são vocacionadas para esse geminado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, prevenindo comportamentos do gênero”.
Ele salientou, ainda, que no plano dos tratados e convenções internacionais, aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro, é conferido ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo tratamento diferenciado para possibilitar alternativas ao encarceramento.
Por fim, o relator destacou também que o Senado Federal promulgou a Resolução 5, em fevereiro de 2012, determinado a suspensão da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas.
Mérito no Plenário Virtual
De acordo com o artigo 323-A, do Regimento Interno do Supremo (RISTF), nos casos de reafirmação de jurisprudência dominante da Corte, o julgamento de mérito de questões com repercussão geral também poderá ser realizado por meio eletrônico.
EC/AD
Fonte:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=228391&tip=UN

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Indulto é uma forma de corrigir erros históricos, por Leandro Gornicki Nunes


O presente texto é uma rendição à provocação jurídica feita pelo eminente professor André Karam Trindade, em coluna publicada pela ConJur, em 5 de janeiro de 2013 (clique aqui para ler), com o objetivo de ressaltar o caráter democrático da concessão de indulto (individual/graça ou coletivo) e comutação de penas pelo presidente da República, cuja previsão está no artigo 84, inciso XII, da Constituição da República.
Em apertada síntese, o texto de André Karam Trindade afirma que o instituto penal do indulto é um “resquício absolutista”, “contrário às noções de devido processo legal e de separação dos Poderes”, além de representar “um arcaísmo jurídico”, que está sustentando um “eficientismo penitenciário”, pois “se transformou num importante mecanismo de uma política penitenciária de viés nitidamente neoliberal, marcada pela lógica da eficiência, voltada à redução de custos”. Além disso, em sua parte final, o texto sugere uma emenda constitucional para “alterar ou até mesmo revogar os dispositivos que tratam do indulto no Brasil” (ipsis literis), uma vez que não se trata de uma cláusula pétrea.
Fundando-me em um método materialista, procurarei analisar a questão preocupando-me, principalmente, com a realidade do Sistema de Justiça Criminal no Brasil (nele inserido as masmorras, digo: os cárceres do nosso sistema prisional), cujas condições estruturais são do conhecimento de qualquer um que tenha acesso aos meios de comunicação ou que atue junto aos aparelhos repressivos de Estado (lugar da fala). Ressalto, desde já, que o propósito do presente texto não é criar celeuma. Apenas quero destacar alguns aspectos práticos importantes da temática proposta pelo ilustre professor, sem olvidar de conceitos como democracia (substancial) e tripartição de poderes.
Indulto e Constituição
No Brasil, o indulto (individual/graça ou coletivo) é uma das formas de extinção da punibilidade (CP, art. 107, II), cuja competência privativa para concessão está constitucionalmente atribuída ao presidente da República (CR, art. 84, XII), observadas certas limitações também de ordem constitucional (CR, art. 5º, XLIII). Portanto, é aparentemente incontroversa a constitucionalidade dessa forma de extinção da punibilidade, cuja competência privativa é do presidente da República. A grande controvérsia está em saber se essa competência, constitucionalmente atribuída ao presidente da República, representa(ria) uma violação à democracia e à tripartição de poderes, representando um “resquício absolutista”.
Pontos de convergência
Dentro de uma concepção formal/procedimental de democracia, seguindo a tradição liberal burguesa incrustada no Estado moderno, é forçoso reconhecer a coerência das ideias defendidas por André Karam Trindade. De fato, o artigo 84, inciso XII, da Constituição da República, permite a tomada de decisões monocraticamente, sem a existência de um controle direto pelos Poderes Legislativo e Judiciário. Destaco, entretanto, que isso não significa que o decreto presidencial que concede o indulto (natalino, por exemplo) seja um ato despótico ou de cunho absolutista, pois não configura uma hipótese de tomada de decisão não sujeita à lei (legibus solutus).
Por outro lado, concordamos que iniciativas como o Decreto 7.873, de 26 de dezembro de 2012, não estão atreladas a sentimentos de piedade humana difundidos na população em geral, mas sim, à necessidade de amenizar o problema de superpopulação carcerária (ver dados do Infopen — Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) e a crise fiscal, seguindo a lógica eficientista neoliberal, e, desse modo, perpetuam e revigoram um Sistema de Justiça Criminal desumano, sem a coragem para impulsionar um grandioso projeto de descriminalização no país. A propósito, antes que se levantem as vozes preocupadas com a soltura da “bandidagem”, lembro que a nossa população carcerária cresce diuturnamente, conforme demonstram os dados do InfoPen, não havendo motivo para pânico, já que o “Direito Penal do inimigo” por aqui foi recebido de “braços abertos”. Só que tal constatação é fundamental para concluir que o indulto não traz a almejada redução de custos com a manutenção do sistema prisional.
De qualquer modo, a interrogação consignada no título do texto de André Karam Trindade merece uma resposta mais crítica em relação à concepção de democracia e de absolutismo.
O que é democracia?
Talvez essa seja a maior dificuldade do presente texto: definir o conceito de democracia. Ardilosamente desviarei dessa complicada questão, limitando-me, com apoio em Arnaldo Miglino, a afirmar que, atualmente, democracia não é apenas procedimento, muito embora a garantia de um mundo mais igual dependa desse pressuposto: o procedimento para a tomada de decisões políticas (Ver MIGLINO, Arnaldo. Democracia não é apenas procedimento. Trad. Érica Hartmann. Curitiba: Jurua, 2006). Além disso, Norberto Bobbio lembra, a respeito do conceito de democracia, que, desde a tradição aristotélica das três formas de governo, passando pela tradição romano-medieval da soberania popular, pelo liberalismo e pelo socialismo, até agora não foi realizada, em nenhuma parte do mundo, a “democracia perfeita”, devendo ela ser, simultaneamente, formal/procedimental, constituindo um método para garantir a prevalência da vontade geral, e, substancial, constituindo um valor para garantia da igualdade jurídica, social e econômica (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13. ed. Brasília: UnB, 2007. p. 319-329).
Indulto não é “resquício absolutista”!
No caso brasileiro, a concessão de indulto (individual ou coletivo) pelo presidente da República não caracteriza um ato absolutista, muito menos uma violação da democracia (procedimental ou substancial).
Sob o enfoque procedimental, em nosso país, a democracia permanece incólume, independentemente da concepção histórica adotada, porque: a) é mantida a soberania popular (CR, art. 1º, parágrafo único) e a igualdade de todos perante a lei, com a manutenção da liberdade de pensamento, consciência, crença, expressão intelectual, artística, científica, comunicação, e convicção filosófica ou política (CR, art. 5º); b) há limites constitucionais para a concessão de indulto (CR, art. 5º, XLIII); c) o presidente da República é escolhido em sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (CR, art. 14); d) a competência do presidente da República para concessão do indulto e comutação de penas foi definida pelo poder constituinte originário (CR, art. 84, XII), ficando preservado o checks and balance; e) há previsão de responsabilidade criminal do presidente da República, seja em razão de crimes de responsabilidade (Lei 1.079/50, arts. 4º e ss.) ou de crimes comuns (CR, art. 85 e 86); f) o Ministério da Justiça, por intermédio do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), permite a participação popular na elaboração do decreto de indulto natalino, por meio do envio de sugestões, como ocorreu em 2012; e, finalmente, g) não há qualquer registro histórico comprovado a respeito do uso dessa competência constitucional para atender interesse pessoal do presidente da República.
Sob o enfoque substancialista, a democracia brasileira é um engodo e está totalmente distante da “virtude” (Montesquieu). Afinal: a) temos uma das piores distribuições de renda do planeta (apesar da sensível melhora dos últimos anos), conforme demonstram as informações do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), de 2010; b) nossos magistrados não são escolhidos pelo povo (CR, art. 93, I), e, em regra (!!!), por razões óbvias, são selecionados em concursos públicos dentre burgueses de matriz conservadora; c) há grande injustiça social e pouca solidariedade; d) não se consegue erradicar a pobreza e a marginalização; e) promove-se o bem do “Capital”, ao invés do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou idade; f) violam-se, explicitamente, os Direitos Humanos (CR, 1º, III) e a Lei de Execução Penal, notadamente, na parte que trata dos direitos do preso (LEP, arts. 40-43).
Especialmente sobre a violação dos Direitos Humanos, dentre eles os direitos básicos de todo preso, permito-me a seguinte provocação: o leitor já imaginou o quão agradável é permanecer em uma cela de 6m² (seis metros quadrados) — que era para ser individual (LEP, art. 88), só que está superlotada —, nesses dias de verão em que as temperaturas batem recordes de calor em todo o país? Tudo bem, eu sei que — teoricamente — se não tivesse cometido algum crime não estaria preso. Como diz uma certa viúva: “Pra tá lá, boa coisa não fez”!... Ocorre que, se estamos falando em democracia e governo das leis, do povo e pelo povo, não é possível manter seres humanos nas condições do nosso sistema prisional, cujas características físicas violam a Constituição da República e a Lei de Execução Penal.
Esse lamentável panorama não irá melhorar tão cedo e, às vezes, tenho vontade de “jogar a tolha”... O Poder Legislativo desenvolve um gigantesco processo de criminalização primária, trazendo para o Direito Penal condutas de perigo abstrato e de lesividade duvidosa, servindo como ilustração dessa afirmação o PLS 236/2012 (projeto de lei do novo Código Penal) e as emendas a ele propostas pelos Srs. Senadores. O Poder Judiciário ainda segue uma linha de aplicação da lei penal desvinculada dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CR, art. 3º), resistindo como pode para manter uma grande massa de descamisados presa preventivamente, deixando de aplicar as disposições da Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, que alterou o Código de Processo Penal, tornando pior as condições de sobrevivência no cárcere e incrementando o déficit de vagas no sistema. E, o Poder Executivo afunda na burocracia — para dizer o mínimo — tornando morosa e duvidosa qualquer mudança nas condições estruturais do sistema prisional.
Por tudo isso, mesmo representando uma atitude reformista (Róza Luksemburg), a concessão de indulto pelo presidente da República, principalmente o natalino, não pode ser considerada uma forma de violação da democracia (procedimental ou substancial). Assumo certo grau de ingenuidade (ou sentimento de esperança) e afirmo que, antes disso, o indulto pode ser uma ferramenta de correção de erros históricos em termos de política criminal, merecendo destaque nesse sentido o Decreto 7.873/2012, cuja extensão é a maior que já vi na história deste país.
No contexto prisional brasileiro, “absolutista” parece ser um poder punitivo que quer mais cárceres e a exclusão de um mecanismo de extinção da punibilidade (indulto), ou seja, de um mecanismo que amplia a liberdade dos “súditos” e não conta, paradoxalmente, com a simpatia desses mesmos “súditos”, de modo que não pode ser tachado como ação populista ou eleitoreira.
Considerações finais
Para concluir, indulto é garantia democrática! Por existirem inúmeras arbitrariedades nos processos de criminalização primária e secundária, a manutenção dessa forma de extinção de punibilidade constitui importante ferramenta para a contenção e redução do poder punitivo quando ele se torna despótico, a exemplo do que ocorreu a partir dos efeitos deletérios da onda neoliberal, conforme denúncia feita por vários criminólogos críticos (Alessandro Baratta, David Garlard, Eugênio Raúl Zaffaroni, Lola Aniyar de Castro, Vincenzo Ruggiero, Juarez Cirino dos Santos, Katie Silene Cáceres Argüello, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Vera Regina Pereira de Andrade, etc.) e pelo sociólogo Loïc Wacquant.
No caso brasileiro, apesar de o decreto de indulto carecer de uma justificativa expressa (de direito), a justificativa (de fato) para a sua concessão está vinculada ao panorama escatológico dos nossos cárceres. Insistimos que houve erros históricos na política criminal brasileira e o indulto pode vir a ser uma das formas de correção desses erros, pois não temos esperança que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam mudar o paradigma vigente em um curto espaço de tempo, mormente quando os meios de comunicação (especialmente a TV) influenciam, sobejamente, a tomada de decisões políticas e até judiciais ao perverter a noção de democracia da população, pressionando, assim, os nossos agentes políticos na direção do recrudescimento penal em prol do capital. Assim, o indulto representa uma forma de ampliação da liberdade das pessoas, não havendo como confundi-lo com uma manifestação absolutista ou forma de dominação do povo.
Construir mais estabelecimentos prisionais é um desserviço ao país, cujos recursos devem ser investidos em áreas sociais (ênfase na educação), devendo ocorrer o paulatino esvaziamento dos cárceres, malgrado opiniões — ao que tudo indica, majoritárias — em sentido contrário.
Se na Espanha José Luis Rodríguez Zapatero concedeu indulto a um banqueiro e o Tribunal Supremo daquele país foi obrigado a arquivar o processo movido contra ele e seu Ministro da Justiça, afirmando se tratar o instituo do indulto de uma “herança do absolutismo”, o povo espanhol — democraticamente — não votou, nas eleições gerais de 20 de novembro de 2011, em sua maioria, no candidato por ele apoiado (Alfredo Pérez Rubalcaba), preferindo votar no candidato do Partido Popular (Mariano Rajoy).
Portanto, com todo o respeito devido ao pensamento liberal clássico, acreditamos que Beccaria não seria tão crítico da concessão de “clemência” (ou indulto) pelo presidente da República, caso tivesse ficado preso em nossos cárceres por um dia sequer. Em terrae brasilis, estamos longe de “uma legislação perfeita”, muito menos de “penas brandas”, havendo sérios problemas em relação ao “método de julgamento”, onde regularidade e rapidez são duvidosas ou perniciosas. E, finalmente, vivemos na “desordem do sistema penal”, de modo que “o perdão e a graça são necessários, na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações”.
LEANDRO GORNICKI NUNES é mestre em Direito do Estado (UFPR), especialista em Direito Penal (Universidade de Salamanca) e professor universitário.

Fonte: www.conjur.com.br (ISSN 1809-2829) - Texto publicado quarta, dia 9 de janeiro de 2013

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A sociedade (da falta) de desejo, por Samantha Buglione*


Segundo Lacan, nosso desejo foi “longamente apalpado, anestesiado, adormecido pelos moralistas, domesticado por educadores, traído pelas academias, muito simplesmente refugiou-se, recalcou-se na paixão mais sutil, e também a mais cega, como nos mostra a história de Édipo”. Pensamos que vivemos uma sociedade hedonista por estar cheia de desejos, mas, em realidade, vivemos uma sociedade hedonista porque ela alimenta a necessidade, a pulsão e o prazer.

Desejo dá trabalho, desejo traz frustração, desejo traz desprazer. Somente a realização imediata de todos os impulsos provoca prazer sempre, e isso não é desejo. Desaprendemos a lidar com o desejo porque hoje ele está coberto por necessidades – que nem sempre são nossas. E, inevitavelmente, ele exige ação.

A pergunta de Lacan – “Agiste conforme o desejo que te habita?” – é, no mínimo, uma pergunta inquietante sobre o desejo em relação ao que temos e ao que não temos (e, por que não, ao que tememos). Agir conforme o desejo que habita não é agir fora da liberdade, da responsabilidade, ou agir por impulso, mas significa agir conforme uma lucidez de si mesmo. O desejo amoroso de Eros é a busca de algo que falta, uma ação egoísta e necessária. Contudo, para haver desejo amoroso, neste caso, é preciso, inevitavelmente, entender o que falta. Caso contrário, iremos operar em um ficção de falta chamada necessidade, via de regra, alimentada por um outro, seja o lobby inteligente da cultura ou a técnica eficiente das propagandas que vendem felicidade. Desejo é diferente de impulso e de necessidade.

O que é o homem deprimido senão alguém que cedeu do seu desejo? Para o psicanalista Sérgio Scotti, professor da UFSC, o vazio do deprimido não é aquele dos bens que deixaram de fazer sentido, mas do desejo que ele não reconhece em si mesmo.

Não há alternativa para uma vida saudável senão ser responsável por nosso desejo; e aí reside a aproximação com a liberdade e a distância dos impulsos. Quem age por impulso não age por desejo, tampouco com liberdade.

Ah, como é mais confortável e sedutora a miopia das ilusões. Dos tempos passados e futuros, das fantasias do “se”. Como é mais tranquila a vida da imaginação adulta que cria obstáculos para realizar o desejo e permitir a liberdade. Como chegamos a este ponto, de optar pela servidão voluntária da falta de desejo e da liberdade? Tempos de escravidão, não? Em que não ousamos, ao menos, crer no desejo.


*DOUTORA EM CIÊNCIAS HUMANAS, JURISTA E PROFESSORA
Fonte: jornal "a notícia", n. 1730, joinville, 08/01/2013, coluna "você.leitor"

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Interceptação telefônica e investigação preliminar


A 2ª Turma do STF concedeu habeas corpus impetrado em favor de denunciado por crime contra a ordem tributária (Lei 8.137/90, art.3º, II), assim como por violação do dever funcional e prevaricação (CP, art.325, §1º, II, c/c art. 319) — com o fim de se declarar a ilicitude de provas produzidas em interceptações telefônicas, ante a ilegalidade das autorizações e a nulidade das decisões judiciais que as decretaram amparadas apenas em denúncia anônima, sem investigação preliminar. Além disso, determinou a juízo federal de piso examinar as implicações da nulidade dessas interceptações nas demais provas dos autos. Na espécie, a autorização das interceptações deflagrara-se a partir de documento apócrifo recebido por membro do Ministério Público. Este confirmara com delegado da Receita Federal os dados de identificação de determinada empresa e do ora paciente, auditor fiscal daquele órgão. Em seguida, solicitara a interceptação, sem, no entanto, proceder a investigação prévia. Ressaltou-se, no ponto, ausência de investigação preliminar. Apontou-se que a interceptação deveria ter sido acionada após verificação da ocorrência de indícios e da impossibilidade de se produzir provas por outros meios.
HC 108147/PR, rel. Min. Cármen Lúcia, 11.12.2012. (HC-108147)