terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A sociedade (da falta) de desejo, por Samantha Buglione*


Segundo Lacan, nosso desejo foi “longamente apalpado, anestesiado, adormecido pelos moralistas, domesticado por educadores, traído pelas academias, muito simplesmente refugiou-se, recalcou-se na paixão mais sutil, e também a mais cega, como nos mostra a história de Édipo”. Pensamos que vivemos uma sociedade hedonista por estar cheia de desejos, mas, em realidade, vivemos uma sociedade hedonista porque ela alimenta a necessidade, a pulsão e o prazer.

Desejo dá trabalho, desejo traz frustração, desejo traz desprazer. Somente a realização imediata de todos os impulsos provoca prazer sempre, e isso não é desejo. Desaprendemos a lidar com o desejo porque hoje ele está coberto por necessidades – que nem sempre são nossas. E, inevitavelmente, ele exige ação.

A pergunta de Lacan – “Agiste conforme o desejo que te habita?” – é, no mínimo, uma pergunta inquietante sobre o desejo em relação ao que temos e ao que não temos (e, por que não, ao que tememos). Agir conforme o desejo que habita não é agir fora da liberdade, da responsabilidade, ou agir por impulso, mas significa agir conforme uma lucidez de si mesmo. O desejo amoroso de Eros é a busca de algo que falta, uma ação egoísta e necessária. Contudo, para haver desejo amoroso, neste caso, é preciso, inevitavelmente, entender o que falta. Caso contrário, iremos operar em um ficção de falta chamada necessidade, via de regra, alimentada por um outro, seja o lobby inteligente da cultura ou a técnica eficiente das propagandas que vendem felicidade. Desejo é diferente de impulso e de necessidade.

O que é o homem deprimido senão alguém que cedeu do seu desejo? Para o psicanalista Sérgio Scotti, professor da UFSC, o vazio do deprimido não é aquele dos bens que deixaram de fazer sentido, mas do desejo que ele não reconhece em si mesmo.

Não há alternativa para uma vida saudável senão ser responsável por nosso desejo; e aí reside a aproximação com a liberdade e a distância dos impulsos. Quem age por impulso não age por desejo, tampouco com liberdade.

Ah, como é mais confortável e sedutora a miopia das ilusões. Dos tempos passados e futuros, das fantasias do “se”. Como é mais tranquila a vida da imaginação adulta que cria obstáculos para realizar o desejo e permitir a liberdade. Como chegamos a este ponto, de optar pela servidão voluntária da falta de desejo e da liberdade? Tempos de escravidão, não? Em que não ousamos, ao menos, crer no desejo.


*DOUTORA EM CIÊNCIAS HUMANAS, JURISTA E PROFESSORA
Fonte: jornal "a notícia", n. 1730, joinville, 08/01/2013, coluna "você.leitor"

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