domingo, 29 de agosto de 2010

El derecho de soñar (por Eduardo Galeano)

Vaya uno a saber como será el mundo más allá del año 2000. Tenemos una única certeza: si todavía estamos ahí, para entonces ya seremos gente del siglo pasado y, peor todavía, seremos gente del pasado milenio.
Sin embargo, aunque no podemos adivinar el mundo que será, bien podemos imaginar el que queremos que sea. El derecho de soñar no figura entre los treinta derechos humanos que las Naciones Unidas proclamaron a fines de 1948. Pero si no fuera por él, y por las aguas que da de beber, los demás derechos se morirían de sed.
Deliremos, pues, un ratito. El mundo, que está patas arriba, se pondrá sobre sus pies cuando:
-En las calles, los automóviles serán pisados por los perros.
-El aire estará limpio de los venenos de las máquinas y no tendrá más contaminación que la que emana de los miedos humanos y de las humanas pasiones.
-La gente no será manejada por el automóvil, ni será programada por la computadora, ni será comprada por el supermercado, ni será mirada por el televisor.
-El televisor dejará de ser el miembro más importante de la familia, y será tratado como la plancha o el lavarropas.
-La gente trabajará para vivir, en lugar de vivir para trabajar.
-En ningún país irán presos los muchachos que se nieguen a hacer el servicio militar, sino los que quieran hacerlo.
-Los economistas no llamarán nivel de vida al nivel de consumo, ni llamarán calidad de vida a la cantidad de cosas.
-Los cocineros no creerán que a las langostas les encanta que las hiervan vivas.
-Los historiadores no creerán que a los países les encanta ser invadidos.
-Los políticos no creerán que a los pobres les encanta comer promesas.
-El mundo ya no estará en guerra contra los pobres, sino contra la pobreza, y la industria militar no tendrá mas remedio que declararse en quiebra por siempre jamás.
-Nadie morirá de hambre, porque nadie morirá de indigestión.
-Los niños de la calle no serán tratados como si fueran basura, porque no habrá niños en la calle.
-Los niños ricos no serán tratados como si fueran dinero, porque no habrá niños ricos.
-La educación no será el privilegio de quienes puedan pagarla.
-La policía no será la maldición de quienes no puedan comprarla.
-La justicia y la libertad, hermanas siamesas condenadas a vivir separadas, volverán a juntarse, bien pegaditas, espalda contra espalda.
-Una mujer, negra, será presidenta de Brasil y otra mujer, negra, será presidenta de los Estados Unidos de América. Una mujer india gobernará Guatemala y otra, Perú.
-En Argentina, las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental, porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria.
-La Santa Madre Iglesia corregirá algunas erratas de las piedras de Moisés. El sexto mandamiento ordenará: "Festejarás el cuerpo". El noveno, que desconfía del deseo, lo declarará sagrado.
-La Iglesia también dictará un undécimo mandamiento, que se le había olvidado al Señor: "Amarás a la naturaleza, de la que formas parte".
-Todos los penitentes serán celebrantes, y no habrá noche que no sea vivida como si fuera la última, ni día que no sea vivido como si fuera el primero.

domingo, 22 de agosto de 2010

A imprensa e a renovação do STF (por Dalmo de Abreu Dallari)

Dentro de poucos dias será escolhido um novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). E a imprensa tem dado muito menos importância a isso do que à escolha do novo treinador da seleção brasileira de futebol. O erro não está na grande publicidade dada à escolha na área esportiva, mas na grave omissão relativamente à escolha de relevante interesse público.
Para que se tenha idéia do significado e da importância da escolha do novo membro do Supremo Tribunal basta lembrar que ele é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o que tem a última palavra na decisão de questões que envolvem direitos fundamentais – dizendo a Constituição, expressamente, que ele é o principal responsável pela guarda da Constituição.
Por suas atribuições, e pela força jurídica de suas decisões, o Supremo Tribunal Federal pode exercer grande influência na vida do povo brasileiro e por isso a escolha de seus integrantes, que a Constituição põe nas mãos do presidente da República, tem enorme importância. Por tudo isso, é oportuna uma reflexão sobre o preenchimento da vaga que será aberta dentro de poucos dias no STF e o papel que a imprensa poderá desempenhar para que o povo participe da escolha que será feita formalmente pelo presidente da República.

Notável saber

Uma das inovações de maior relevância no quadro político-social brasileiro deste início do século 21 é a ampliação da influência do Poder Judiciário. Um dos reflexos dessa inovação é o aumento considerável da presença do Judiciário nas notícias e nos comentários da imprensa. A par de alguns aspectos positivos, essa exposição maior do Judiciário tem revelado que ele tem deficiências de organização e funcionamento que precisam ser seriamente enfrentadas; e uma delas, com grave reflexo em decisões muito relevantes do Supremo Tribunal, é o processo de escolha de seus membros, que dá margem à existência de dúvidas sobre os verdadeiros motivos que levaram à escolha de um ou outro ministro.
Alguns acontecimentos recentes são bem ilustrativos dessas distorções e de como elas são tratadas pela imprensa.
Antes de tudo, no que diz respeito especificamente à cobertura da imprensa, é oportuno observar que na divulgação do que acontece no Supremo Tribunal Federal, nos comentários e nas informações sobre o pensamento e a posição dos ministros, a imprensa vem adotando o mesmo tratamento utilizado para noticiar e comentar fatos referentes ao jogo político protagonizado por membros do Legislativo ou do Executivo. Isso, precisamente, vem acontecendo agora com relação à escolha de um novo membro para o STF, em decorrência da aposentadoria do ministro Eros Grau. Assim, por exemplo, foram divulgadas especulações, sem a indicação de qualquer fundamento, sugerindo que já estariam definidos dois candidatos, um "técnico" e um "político", oscilando o presidente da República entre essas duas opções.
O dado fundamental, que vem sendo omitido, é que nos segmentos da sociedade brasileira mais preocupados com a efetivação dos direitos e deveres consagrados na Constituição existe consenso no sentido de que o processo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal deverá ser substancialmente modificado, para dar maior representatividade e legitimidade democrática aos seus integrantes.
Lamentavelmente, a imprensa vem deixando passar a oportunidade de abrir um amplo e sério debate sobre os critérios para escolha dos ministros do STF. A atual Constituição reproduziu, com pequena alteração, o que já dispunha a primeira Constituição republicana brasileira, de 1891, que determinava a escolha entre "cidadãos de notável saber e reputação". Nos termos da Constituição de 1988, os membros do STF serão nomeados pelo presidente da República com prévia aprovação do Senado, dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Valores éticos

O reconhecimento da insuficiência desses critérios, sobretudo em vista do aumento da influência do Judiciário nos últimos tempos, tem sido praticamente unânime entre os conhecedores do desempenho do Supremo Tribunal Federal, estando em discussão várias propostas de adoção de novos parâmetros para escolha de seus integrantes. Já surgiram inúmeras sugestões de aperfeiçoamento do processo de escolha, considerando a experiência acumulada e as novas realidades.
Foi precisamente nessa linha que a Associação dos Magistrados Brasileiros formulou Proposta de Emenda Constitucional (PEC 434), que está em tramitação no Congresso Nacional. A par disso, e independente de reforma constitucional, existe uma intensa movimentação, com a participação de pessoas e entidades com larga experiência na defesa do Direito e da Justiça, propondo que seja dada ao povo, sobretudo à comunidade jurídica e aos que atuam visando a construção de uma sociedade justa e democrática, a possibilidade de influir na escolha do novo ministro do Supremo Tribunal Federal.
Pessoas e entidades de todas as partes do Brasil estão realizando reuniões e publicando manifestos – e isso tudo tem sido ignorado pela imprensa. Nessa movimentação tem havido, inclusive, a lembrança de alguns nomes que reforçariam o compromisso do STF com os fundamentos humanistas da Constituição. Assim, tem sido lembrado com muita ênfase o juiz federal e professor da PUC de São Paulo Sílvio Luiz Ferreira da Rocha, figura notável pela cultura jurídica, pela sensibilidade social e pela comprovada imparcialidade e independência. Outro nome de grande prestígio é o do professor da Universidade Federal do Paraná Luiz Edson Fachin, eminente civilista com amplos e sólidos conhecimentos de Direito Público e atento à realidade social. Tem sido também muito enfatizado o nome do constitucionalista e advogado Luis Roberto Barroso, advogado público com grande experiência nos tribunais superiores e corajoso defensor dos direitos humanos. Além de outros nomes que poderiam ser lembrados, aí estão três figuras representativas dos mais altos valores éticos e jurídicos do povo brasileiro, que o presidente da República deverá considerar.

Atitude inspiradora

Em síntese, existe consenso no sentido de que o processo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal deverá ser substancialmente modificado, para dar maior legitimidade democrática aos seus integrantes e maior aproximação daquela Alta Corte com a sociedade.
Uma hipótese que poderia ser considerada agora pelo presidente da República, para o preenchimento da vaga resultante da saída do ministro Eros Grau, seria a realização de uma consulta de âmbito nacional, dando-se às instituições diretamente ligadas às atividades jurídicas – como os tribunais, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados e as entidades associativas dessas áreas – a oportunidade de sugerirem nomes. Entre os três nomes que recebessem maior número de indicações o presidente da República escolheria um deles e o submeteria à aprovação do Congresso Nacional.
Obviamente, não haverá tempo para uma discussão aprofundada do assunto antes do preenchimento da vaga que será aberta agora, mas se a imprensa der ênfase ao problema, isso certamente influirá para que haja maior cuidado do presidente da República. Além disso, tal atitude deverá ser inspiradora do início de um amplo debate objetivando a atualização dos critérios para escolha dos futuros membros do Supremo Tribunal Federal, a fim de que a composição da Suprema Corte seja o reflexo dos valores éticos e jurídicos do povo brasileiro

sábado, 7 de agosto de 2010

Jornada de fundação do Núcleo de Direito Processual Penal da UFPR (NPP)

Clara Maria Roman Borges*

Acaba-se de criar, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, o Núcleo de Direito Processual Penal (NPP), por iniciativa do Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e da Profª Clara Maria Roman Borges.
O objetivo é desenvolver pesquisas sobre temas de direito processual penal tomando como referência um viés crítico e democrático vinculado à Constituição da República.
No dia 04 de agosto ocorreu a primeira reunião do NPP. Ele congrega professores de Direito Penal e Processual Penal das várias Faculdades de Curitiba, mestre e doutores, bem como alunos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, assim como profissionais das carreiras jurídicas. Busca-se, por evidente, uma maior integração, tomando-se por referência a universidade pública e seu papel junto à comunidade.
Na primeira reunião estavam presentes Adriano Bretas, Aline Guidalli Pilati, André Ribeiro Giamberardino, Bruna Amatuzzi, Érica de Oliveira Hartmann, Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha Jr., Jefferson Augusto de Paula, Leandro Gornicki Nunes, Luiz Antonio Câmara, Maicon Guedes, Marco Aurélio Nunes da Silveira, Maurício Stegemann Dieter, Priscilla Placha Sá, Maria Francisca Accioly, Renata Ceschin Melfi de Macedo, Rui Dissenha e Sylvio Lourenço da Silveira Filho.
Neste momento inicial, o Núcleo se reunirá semanalmente e terá como tarefa estudar a reforma do Código de Processo Penal gestada pelo PLS nº 156/09 que está em tramitação no Senado Federal. A primeira preocupação dos pesquisadores será debater as mudanças legislativas propostas pelo referido projeto, bem como as emendas apresentadas pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e outras propostas. Tal discussão tem por finalidade provocar a reflexão sobre o potencial da nova legislação para promover a prometida constitucionalização do direito processual penal brasileiro, bem como sobre possíveis correções que podem aproximá-la ainda mais deste objetivo.
É preciso ressaltar que parte deste grupo do NPP está dando continuidade a uma pesquisa iniciada há três anos, no âmbito de um PROCAD (Projeto de pesquisa financiado pela CAPES), desenvolvido em conjunto pelos Programas de Pós-graduação em Direito da UFPR e da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Ao longo destes anos reuniões foram realizadas no Rio de Janeiro e em Curitiba para discutir a reforma do CPP, o que demonstra a maturidade dos pesquisadores no estudo do tema, algo que pode ser conferido no livro O Novo Processo Penal à Luz da Constituição (Análise Crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal), da Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010.

* Mestre e Doutora em Direito Processual Penal pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Professora de Direito Processual Penal do Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil.

O Burgues em Estado Puro...

“Quem tem agora 50, 60 anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais.” Assim respondia Massimo Borghesi, professor titular de Filosofia da Universidade Urbaniana de Roma, à pergunta sobre quais motivos levavam a juventude europeia atual ao individualismo e aburguesamento sem precedentes. Destacava como causa a ausência de ideais transmitidos aos jovens, devido ao comportamento de professores universitários, que tinham sido os aguerridos combatentes dos descalabros sociais dos anos 1960, mas agora, descrentes da praxis marxista, aderiram à ideia do “burguês em estado puro” no conceito de Augusto Del Noce.
Os herdeiros da massa falida da práxis marxista amargam as consequências mais negativas: a decepção e a frustração. Imaginava-se que a solução dos problemas sociais proviria da luta de classes, não obstante, a própria praxis, a atuação histórica, demonstrou a falsidade dessa ideologia, evidenciada pela ruína do comunismo e o desabamento da União Soviética.
A crença nesse sistema, como única solução, levou a que muitos dos seus devotos concluíssem que “se não há mais nada que valha a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final de contas, que somente permanece a ideia do ‘burguês em estado puro’, aquele que não tem mais nenhum ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral”.
Explica-se esse estado de decepção, para os que acreditam que todo e qualquer ideal é ideologia e portanto o disfarce dos interesses de classe. Para a geração desse credo, hoje na casa dos 50 ou 60 anos, a solução seria a da transformação social radical pela luta de classes. Com a comprovação do erro marxista, em vez de se proporem a um novo modo de pensar, e uma reforma comportamental, acabaram pensando que não há mais nada em que acreditar. Propagou-se “uma espécie de cinismo em massa”, definido por Augusto Del Noce como a do “burguês em estado puro”. Caracterizado pela falta de valores vivenciais e apenas a busca da satisfação das necessidades mais imediatas. “Divirta-se, goze a vida e enriqueça.”
O meio universitário brasileiro também sofre dessa mesma enfermidade. No entanto, o que fazer para reverter esse estado de apatia moral? Pode-se propor como pauta, na missão da universidade, como queria Jorge Lacerda, que o estudante aprenda, “acima de todos os misteres, o mister de Homem”. Nisso se insere a responsabilidade educativa, porquanto todo professor pode ser, além de transmissor ou mediador do conhecimento, um construtor e inspirador de valores morais. Massimo salienta que “a maneira como se transmite a matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina”.
A educação não se pode reduzir à mera atividade informativa, pois é preciso conectar cada disciplina com a vida, com a realidade em que será aplicada, relacionada e compreendida. Essa interação, que abarca a postura do universitário diante da realidade, possibilita a sua inserção numa dimensão que tem consequências morais, éticas e religiosas.
Tornou-se uma banalidade repetir a frase: “A nossa sociedade está em crise de valores”, isso porque os valores somente adquirem realidade à medida que são incorporados na vida do professor, do médico, do político, do jornalista, do advogado etc. A crise está, sobretudo, na prática dos valores éticos no dia a dia dos profissionais, e mais especialmente, de acordo com Massimo, na figura do médico, do professor e do sacerdote, porquanto eram “as principais figuras sociais que encarnavam os ideais”.
A responsabilidade educativa exige dos educadores o combate ao cinismo do “burguês em estado puro”, por meio da vivência das virtudes em cada trabalho, em três dimensões: na objetiva, que se caracteriza pelo trabalho bem feito; na subjetiva, pelo desenvolvimento das virtudes pessoais ao fazer o bem e a obra bem feita e, por fim, na dimensão social, pela contribuição eficaz ao bem comum.

* Paulo Sertek, doutor em Educação pela UFPR, é professor da FAE Centro Universitário e autor dos livros: Responsabilidade Social e Competência Interpessoal, Empreendedorismo e Administração e Planejamento Estratégico. paulo-sertek@uol.com.br.

FONTE: Jornal Gazeta do Povo, Curitiba, 6 de agosto de 2010, coluna Opinião.

'Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito'

Eros Roberto Grau deixou ontem a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) convencido de que a Lei da Ficha Limpa põe "em risco" o Estado de Direito. Ele acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ignorar o princípio da irretroatividade das leis. "Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional."

Para Eros Grau, o que é ficha limpa?
"Ficha limpa" é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras.

Políticos corruptos não são uma ameaça aos cofres públicos e ao estado de direito?
Sim, sem nenhuma dúvida. Políticos corruptos pervertem, são terrivelmente nocivos. Mas só podemos afirmar que este ou aquele político é corrupto após o trânsito em julgado, em relação a ele, de sentença penal condenatória. Sujeitá-los a qualquer pena antes disso, como está na Lei Complementar 135 (Ficha Limpa), é colocar em risco o estado de direito. É isto que me põe medo.

O que está em jogo não é a moralidade pública?
Sim, é a moralidade pública. Mas a moralidade pública é moralidade segundo os padrões e limites do estado de direito. Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para impedir isso existe o direito. Sem a segurança instalada pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de seus pressupostos, no estado de direito, a presunção de não culpabilidade.

A profusão de liminares concedidas a candidatos, inclusive pelo Supremo, não confunde o eleitor?
Creio que não. Juízes independentes não temem tomar decisões impopulares. Não importa que a opinião publicada pela imprensa não as aprove, desde que elas sejam adequadas à Constituição. O juiz que decide segundo o gosto da mídia não honra seu ofício. De mais a mais, eleitor não é imbecil. Não se pode negar a ele o direito de escolher o candidato que deseja eleger.

Muitos partidos registraram centenas de candidaturas mesmo sabendo que elas poderiam ser enquadradas na Lei 135/2010, que barra políticos condenados por improbidade ou crime. Não lhe parece que os partidos estão claramente atropelando a Lei da Ficha Limpa, esperando as bênçãos do Judiciário?
Não, certamente. O Judiciário não existe para abençoar, mas para aplicar o direito e a Constituição. Muito pior do que corrupto seria um juiz, medroso, que abençoasse. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional.

Como aguardar pelo trânsito em julgado se na esmagadora maioria das ações ele é inatingível?
O trânsito em julgado não é inatingível. Pode ser demorado, mas as garantias e as liberdades públicas exigem que os ritos processuais sejam rigorosamente observados.

A Lei da Ficha Limpa é resultado de grande apelo popular ao qual o Congresso se curvou. O interesse público não é o mais importante?
Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.

Não teme que a Justiça decepcione o País?
Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.

O senhor teme realmente uma escalada contra a democracia?
Temo, seriamente, de verdade. O perecimento das democracias começa assim. Estamos correndo sérios riscos. A escalada contra ela castra primeiro os direitos políticos, em seguida as garantias de liberdade. Pode estar começando, entre nós, com essa lei. A seguir, por conta dessa ou daquela moralidade, virá a censura das canções, do teatro. Depois de amanhã, se o Judiciário não der um basta a essa insensatez, os livros estarão sendo queimados, pode crer.

Por que o Supremo Tribunal Federal nunca, ou raramente, condena gestores públicos acusados por improbidade ou peculato?
Porque entendeu, inúmeras vezes, que não havia fundamentos ou provas para condenar.
Que críticas o senhor faz à forma do Judiciário decidir?
As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo.

Isso tem acontecido?
Lógico. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.

O senhor tem coragem de votar em um político com ficha suja?
Entendido que "ficha-suja" é unicamente quem tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado, certamente não votarei em um deles. Importante, no entanto, é que eu possa exercer o direito de votar com absoluta liberdade, inclusive para votar em quem não deva.

O senhor está deixando o STF. Retoma a advocacia? Aceitará como cliente de sua banca um folha corrida?
Terei mais tempo para ler e estudar. Escrever também, fazer literatura. E trabalhar com o direito. Para defender quem tenha algum direito a reclamar, desde que eu me convença de que esse direito seja legítimo. Ainda que se o chame de "folha corrida".

E para Brasília o senhor pretende voltar?
Brasília é uma cidade afogada, seca, onde você não é uma pessoa, você é um cargo.

FONTE: Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 03 de agosto de 2010. (Entrevistadores: Fausto Macedo e Felipe Recondo).

domingo, 1 de agosto de 2010

Violência Policial no Brasil Neoliberal

Há risco de o erro virar regra. Primeiro, o aceno ordenando parar. Distraído, o técnico em manutenção Francisco das Chagas de Oliveira, que voltava de um trabalho na companhia do filho no domingo passado, continuou a guiar a moto. Não ter acatado o sinal do policial militar foi o suficiente para que o soldado sacasse uma arma, em plena rua de Fortaleza (CE), e atirasse na nuca de Bruce Cristian, que estava na garupa.
A morte do garoto de 14 anos, provocada por quem é pago pelo Estado para oferecer proteção, não é caso isolado. Quase 400 pessoas foram assassinadas no Brasil pelas polícias Militar e Civil em 2008, base mais atualizada do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. Os óbitos são classificados como “intervenção legal”. Ocorreram enquanto o policial tentava deter quem infringia a lei. Rio de Janeiro e São Paulo respondem juntos por 323 dos 398 óbitos notificados em 2008.
A falta de preparo dos agentes, a ausência de punição e a nomenclatura com que as mortes são registradas são o que mais contribui para a impunidade, dizem especialistas. “Temos nesse balanço casos de execução nomeados como intervenção legal”, critica Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global.
Embora o policial cearense que matou Bruce Cristian tenha dito, em depoimento, ter se tratado de um disparo acidental, a corporação do Estado reconheceu a operação como “desastrosa”. Polícias Civil e Militar tiraram a vida de quase 400 brasileiros em 2008.
Fonte: Jornal A Notícia, n. 843, Joinville, 1 de agosto de 2010, coluna AN País, p. 15.