quarta-feira, 6 de março de 2013

Sintomas da violência estrutural e institucional


Leandro Gornicki Nunes·

Partindo dos dados do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), atualizados até junho de 2012, este texto pretende fazer uma crítica à violência estrutural e institucional[1] existente no Brasil[2]. A população brasileira é de 190.732.694 pessoas, sendo que 549.577 estão presas no sistema penitenciário ou em estabelecimentos outros (média de 288,14 / 100.000 hab.). São sintomas da violência:
1. Violação da Lei de Execução Penal (LEP): em nosso país, há 41.220 presos em delegacias de polícia, inclusive, cumprindo pena privativa de liberdade, configurando uma flagrante violação da LEP e constituindo um universo obscuro para a presente análise, pois o InfoPen não traz indicadores em relação a essas pessoas. Ainda, tocante ao déficit estrutural do sistema penitenciário, somando-se a estrutura estadual e a federal, há 309.074 vagas no país, demonstrando um excedente de 240.503 presos. Certamente, muitos estabelecimentos estão superlotados e, em consequência, inúmeros direitos desses seres humanos são violados (LEP, arts. 40-43).
2. Violação à presunção de inocência: a Constituição é desprezada em muitos casos onde há o aprisionamento de pessoas sem que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença condenatória. São 191.024 presos provisórios no sistema penitenciário, algo em torno de 37,5% dos presos do sistema carcerário (não sendo possível contabilizar os presos em delegacias de polícia). Somente 317.333 presos estão cumprindo pena. É o “autoritarismo cool” de que fala Zaffaroni, onde o poder punitivo se funda na presunção de periculosidade[3].
3. Seletividade e vulnerabilidade: os indicadores vinculados ao perfil do preso explicitam a seletividade do Sistema de Justiça Criminal, cuja atuação se concentra nos setores mais vulneráveis da sociedade, onde, não raro, as condutas injustas decorrem do contexto de marginalidade e pobreza extremas. Neste momento é importante destacar:
3.1. Grau de instrução: presos analfabetos (28.006) e alfabetizados (65.041) totalizam 93.047; com ensino fundamental incompleto (228.627) ou completo (57.935) totalizam 286.562; com ensino médio incompleto (56.257) ou completo (37.820) totalizam 86.014; com ensino superior incompleto (4.229) ou completo (2.126) totalizam 6.355; com pós-graduação há 90 presos[4].
É possível perceber que, em termos proporcionais, o grau de instrução da população brasileira, com idade superior a 18 anos, não é compatível com o grau de instrução da população carcerária, donde se conclui que o Sistema de Justiça Criminal atua com mais vigor sobre as pessoas com menor grau de instrução, responsáveis pela “obra tosca da criminalidade”[5], cuja maior visibilidade favorece a ação das polícias e do Judiciário. Embora a criminalidade esteja em todas as classes sociais e graus de instrução, o Sistema de Justiça Criminal criminaliza as condutas menos complexas, ou seja, a “criminalidade de rua”, notadamente os crimes patrimoniais e a narcotraficância de varejo.
3.2. Tempo total das penas: os dados mostram que cerca de 10,5% da população carcerária (excluídos os presos em delegacias) possui condenação a pena privativa de liberdade acima de 20 anos (53.730 presos). Logo, é possível deduzir que os demais presos (em número muito maior) sairão livres em um curto espaço de tempo[6], ainda mais se considerados os benefícios da execução penal (livramento condicional, regime aberto e indulto). Pode-se concluir: a) a política criminal precisa mudar radicalmente[7]; b) esse grande contingente de egressos do sistema prisional deve ser inserido em políticas sociais garantidoras de cidadania, impedindo a evolução de “carreiras desviantes”[8].
3.3. Criminalização da pobreza e da juventude: pelo tipo legal é possível ter uma noção da condição socioeconômica do agente delituoso. Do total dos presos no sistema penitenciário (508.357), praticaram crimes patrimoniais (256.352) e narcotráfico (133.946) um total de 390.298, ou seja, 76,77% dessa população: pessoas que estão nessa situação em virtude da crise estrutural do capital[9], produtora de marginalidade e pobreza extremas, forçando milhares delas a violar a lei para ter um mínimo de dignidade na “era do consumo”. É esse universo de vulneráveis que o sistema seleciona para exercer o seu poder (violência institucional), corroborando a injustiça do capitalismo neoliberal (violência estrutural)[10].
Outra questão alarmante em nosso país é a criminalização de uma juventude constitutiva do exército de reserva da força de trabalho que, por não ter instrução adequada, principalmente após a revolução tecnológica ocorrida recentemente, são inúteis e exigem controle máximo. Há no sistema penitenciário 260.154 presos com idade entre 18 e 29 anos, representando 51,17% desse universo, que, somados aos presos cuja idade varia de 30 a 45 anos (173.988), totalizam 434.142 presos (85,4% do total), evidenciando a forma seletiva de aprisionamento dos mais jovens em nosso país.
Por outro lado, a seletividade do sistema fica escancarada quando são analisadas as informações a respeito dos crimes contra a Administração Pública. estão presos por: a) corrupção passiva: 77; b) concussão: 51; c) peculato: 1.175; d) corrupção ativa: 5620. Destarte, chega a ser cômica a situação quando se vêem tantos escândalos na mídia envolvendo a Administração Pública em comparação com a atuação tênue do sistema de justiça criminal na chamada “luta contra a corrupção”.
3.4. Racismo: o indicador de cor de pele/etnia é o mais complexo, pois, no Brasil, houve histórica miscigenação[11]. O interessante é que os dados do InfoPen derrubam a ideia lombrosiana de que os negros teriam propensão inata à criminalidade: apenas 81.602 negros estão presos, enquanto que a população branca (172.369) e parda (210.171) é quase cinco vezes maior (382.540). Seguindo a lógica positivista, talvez, seja essa informação o maior legado do InfoPen: comprovar que os negros, apesar da histórica subcidadania a que foram submetidos[12], são muito menos delinquentes que os brancos. Só que isso, infelizmente, não é prova do fim do racismo no Brasil.
3.5. Encarceramento feminino: em face da “luta contra as drogas”, as mulheres passaram a ser vítimas da seletividade do sistema penal. Do total da população carcerária, apenas 31.552 são mulheres (não computadas aquelas que estão presas em delegacias), em cujo perfil merece destaque o fato de 17.452 serem analfabetas (1.382), alfabetizadas (2.486) ou possuírem ensino fundamental (in)completo (13.584), e, 23.875 terem praticado crimes relacionados com o patrimônio (6.697) ou narcotráfico (17.178), totalizando 75,66% das presas. Trata-se da criminalidade vinculada ao contexto de marginalidade e pobreza. Ademais, os  estabelecimentos prisionais destinados a elas estão em piores condições do que os  destinados ao homens. E, para piorar a perspectiva sociológica, a maioria possui filhos que ficam, em muitos casos, abandonados, tornando mais deletéria a ação criminógena da pena privativa de liberdade.
3.6. Reincidência: não há informação a respeito da reincidência. Ao que tudo indica, o Estado não pode passar essa informação, porque isso seria o “atestado de óbito” da ideia de prevenção especial positiva (ressocialização).
4. Tratamento prisional: estinados à população masculina. Em resumo: o machismo impera até no campo da seletividade do Sistema de Justiça Criminal e essa mulheres, na sua maioria, possuem filhos em condições de abandono, potencializando os danos sociais da ação criminógena do Estado. Os presos brasileiros são pessoas conformadas com a injustiça social. Apesar dos presos – salvo raríssimas exceções – viverem em condições desumanas, poucos se envolveram em fugas (572) ou suicídios (8). Logo, trata-se de pessoas servis, dóceis e subjugadas, ao contrário do que é propalado pelo discurso midiático escatológico.
Concluindo, a sociedade brasileira, apesar de heterogênea (opressora, desigual, injusta e dividida em classes), possui uma população carcerária altamente homogênea.
Esse perfil dos presos é indício de que a maior parte dos sujeitos selecionados são pessoas que vivem no contexto de marginalidade e pobreza extremas, muitas vezes, agravadas por prévias passagens no sistema prisional. Apesar da pretensão de diminuição da população carcerária inserida na Lei n. 12.403/11, que alterou o Código de Processo Penal em relação à prisão processual, a “morte era anunciada”: a população carcerária não diminui. Um dos motivos para esse problema é a falta de uma Defensoria Pública devidamente instrumentalizada nos Estados e uma jurisprudência desgarrada da visão reacionária do Direito Penal. Sem esses dois elementos dificilmente haverá diminuição da população carcerária e da violência estrutural e institucional.


· Advogado. Professor de Direito Penal e Criminologia. Coordenador do Núcleo de Estudos de Ciências Criminais da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (USAL) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
[1] A violência estrutural está ligada às relações de produção nos processo de trabalho, em todos os setores da atividade humana, enquanto que a violência institucional se liga ao conteúdo e à atuação ou funcionamento diferencial das superestruturas do poder político e jurídico do Estado. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 85.
[2] Segundo Bustos Ramírez e Hormazábal Malareée, só poderá ser considerado criminólogo quem trabalha com dados empíricos que tenha obtido de suas próprias investigações ou das de outros. In BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernán. Lecciones de Derecho Penal: parte general. Madrid: Trotta, 2006. p. 38.
[3] ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 70.
[4] Para melhor compreensão da seletividade, cabe destacar que, do total da população carcerária considerada pelo InfoPen (508.357), até junho de 2012: a) 18,3% são analfabetos ou alfabetizados: b) 56,37% possui ensino fundamental (in)completo; c) 18,5% possui ensino médio (in)completo; d) 1,25% possui ensino superior (in)completo; e, e) 0,01% possui pós-graduação.
[5] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 47.
[6] “Curto espaço de tempo” para quem está livre. Mas, uma “eternidade” para quem sobrevive nas malhas do sistema carcerário.
[7] Em nosso país a política criminal é substituída por política penal. O Estado não cuida adequadamente de questões como emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, que são programas capazes de alterar ou de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 4. ed. rev. Florianópolis: Conceito, 2010. p. 419.
[8] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 36-49.
[9] MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Trad. Francisco R. Cornejo. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2011.
[10] RUGGIERO, Vincenzo. Crimes e mercados: ensaios em anticriminologia. Trad. Davi Tangerino, Luciana Boiteux e Luiz G. M. de Paiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[11] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo: Global, 2006.
[12] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: UFMG/IUPERJ, 2003.

Como citar este artigo: GORNICKI NUNES, Leandro. Sintomas da Violência Estrutural e Institucional. Olhar Jurídico. Cuiabá. Acesso em 04 mar. 2013: 
http://juridico.olhardireto.com.br/artigos/exibir.asp?artigo=Sintomas_da_violencia_estrutural_e_institucional&id=249

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