Leandro Gornicki Nunes·
Partindo dos dados do InfoPen
(Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), atualizados até junho de
2012, este texto pretende fazer uma crítica à violência estrutural e institucional[1] existente no Brasil[2]. A população brasileira é de
190.732.694 pessoas, sendo que 549.577 estão presas no sistema penitenciário ou em estabelecimentos
outros (média de 288,14 / 100.000 hab.). São sintomas da violência:
1. Violação da Lei de Execução Penal (LEP): em nosso país, há 41.220
presos em delegacias de polícia, inclusive, cumprindo pena privativa de
liberdade, configurando uma flagrante violação da LEP e constituindo um
universo obscuro para a presente análise, pois o InfoPen não traz indicadores
em relação a essas pessoas. Ainda, tocante ao déficit estrutural do sistema penitenciário, somando-se a estrutura
estadual e a federal, há 309.074 vagas no país, demonstrando um excedente de
240.503 presos. Certamente, muitos estabelecimentos estão superlotados e, em
consequência, inúmeros direitos desses seres humanos são violados (LEP, arts.
40-43).
2. Violação à presunção de inocência: a Constituição é desprezada em
muitos casos onde há o aprisionamento de pessoas sem que tenha ocorrido o
trânsito em julgado da sentença condenatória. São 191.024 presos provisórios no
sistema penitenciário, algo em torno
de 37,5% dos presos do sistema carcerário (não sendo possível contabilizar os
presos em delegacias de polícia). Somente 317.333 presos estão cumprindo pena.
É o “autoritarismo cool” de que fala
Zaffaroni, onde o poder punitivo se funda na presunção de periculosidade[3].
3. Seletividade e vulnerabilidade: os indicadores vinculados ao perfil do preso explicitam a seletividade do Sistema de Justiça
Criminal, cuja atuação se concentra nos setores mais vulneráveis da sociedade,
onde, não raro, as condutas injustas decorrem do contexto de marginalidade e
pobreza extremas. Neste momento é importante destacar:
3.1. Grau de instrução: presos analfabetos (28.006) e alfabetizados
(65.041) totalizam 93.047; com ensino
fundamental incompleto (228.627) ou completo (57.935) totalizam 286.562; com ensino médio incompleto
(56.257) ou completo (37.820) totalizam 86.014;
com ensino superior incompleto (4.229) ou completo (2.126) totalizam 6.355; com pós-graduação há 90 presos[4].
É possível perceber que, em termos
proporcionais, o grau de instrução da população brasileira, com idade superior
a 18 anos, não é compatível com o grau de instrução da população carcerária,
donde se conclui que o Sistema de Justiça Criminal atua com mais vigor sobre as
pessoas com menor grau de instrução, responsáveis pela “obra tosca da
criminalidade”[5], cuja maior visibilidade favorece a
ação das polícias e do Judiciário. Embora a criminalidade esteja em todas as
classes sociais e graus de instrução, o Sistema de Justiça Criminal criminaliza
as condutas menos complexas, ou seja, a “criminalidade de rua”, notadamente os
crimes patrimoniais e a narcotraficância de varejo.
3.2. Tempo total das penas: os dados mostram que cerca de 10,5% da
população carcerária (excluídos os presos em delegacias) possui condenação a
pena privativa de liberdade acima de 20
anos (53.730 presos). Logo, é possível deduzir que os demais presos (em
número muito maior) sairão livres em um curto espaço de tempo[6], ainda mais se considerados os
benefícios da execução penal (livramento condicional, regime aberto e indulto).
Pode-se concluir: a) a política criminal
precisa mudar radicalmente[7]; b) esse grande contingente de
egressos do sistema prisional deve ser inserido em políticas sociais
garantidoras de cidadania, impedindo a evolução de “carreiras desviantes”[8].
3.3. Criminalização da pobreza e da juventude: pelo tipo legal é
possível ter uma noção da condição socioeconômica do agente delituoso. Do total
dos presos no sistema penitenciário
(508.357), praticaram crimes patrimoniais (256.352) e narcotráfico (133.946) um
total de 390.298, ou seja, 76,77% dessa população: pessoas que estão nessa
situação em virtude da crise estrutural do capital[9], produtora de marginalidade e
pobreza extremas, forçando milhares delas a violar a lei para ter um mínimo de
dignidade na “era do consumo”. É esse universo de vulneráveis que o sistema
seleciona para exercer o seu poder (violência
institucional), corroborando a injustiça do capitalismo neoliberal (violência estrutural)[10].
Outra questão alarmante em nosso país
é a criminalização de uma juventude constitutiva do exército de reserva da
força de trabalho que, por não ter instrução adequada, principalmente após a
revolução tecnológica ocorrida recentemente, são inúteis e exigem controle
máximo. Há no sistema penitenciário 260.154 presos com idade entre 18 e 29
anos, representando 51,17% desse universo, que, somados aos presos cuja idade
varia de 30 a 45 anos (173.988), totalizam 434.142 presos (85,4% do total),
evidenciando a forma seletiva de aprisionamento dos mais jovens em nosso país.
Por outro lado, a seletividade do
sistema fica escancarada quando são analisadas as informações a respeito dos
crimes contra a Administração Pública. estão presos por: a) corrupção passiva: 77; b) concussão: 51; c) peculato: 1.175; d) corrupção
ativa: 5620. Destarte, chega a ser cômica a situação quando se vêem tantos
escândalos na mídia envolvendo a Administração Pública em comparação com a
atuação tênue do sistema de justiça criminal na chamada “luta contra a
corrupção”.
3.4. Racismo: o indicador de cor de pele/etnia é o mais complexo, pois,
no Brasil, houve histórica miscigenação[11]. O interessante é que os dados do
InfoPen derrubam a ideia lombrosiana de que os negros teriam propensão inata à
criminalidade: apenas 81.602 negros estão presos, enquanto que a população
branca (172.369) e parda (210.171) é quase cinco vezes maior (382.540).
Seguindo a lógica positivista, talvez,
seja essa informação o maior legado do InfoPen: comprovar que os negros, apesar
da histórica subcidadania a que foram submetidos[12], são muito menos delinquentes que os
brancos. Só que isso, infelizmente, não é prova do fim do racismo no Brasil.
3.5. Encarceramento feminino: em face da “luta contra as drogas”, as
mulheres passaram a ser vítimas da seletividade do sistema penal. Do total da
população carcerária, apenas 31.552 são mulheres (não computadas
aquelas que estão presas em delegacias), em cujo perfil merece destaque o fato
de 17.452 serem analfabetas (1.382), alfabetizadas (2.486) ou possuírem ensino
fundamental (in)completo (13.584), e, 23.875 terem praticado crimes relacionados
com o patrimônio (6.697) ou narcotráfico (17.178), totalizando 75,66% das
presas. Trata-se da criminalidade vinculada ao contexto de marginalidade e
pobreza. Ademais, os estabelecimentos
prisionais destinados a elas estão em piores condições do que os destinados ao homens. E, para piorar a
perspectiva sociológica, a maioria possui filhos que ficam, em muitos casos,
abandonados, tornando mais deletéria a ação criminógena da pena privativa de
liberdade.
3.6. Reincidência: não há informação a
respeito da reincidência. Ao que tudo indica, o Estado não pode passar essa
informação, porque isso seria o “atestado de óbito” da ideia de prevenção especial positiva
(ressocialização).
4. Tratamento
prisional: estinados à
população masculina. Em resumo: o machismo impera até no campo da seletividade
do Sistema de Justiça Criminal e essa mulheres, na sua maioria, possuem filhos
em condições de abandono, potencializando os danos sociais da ação criminógena
do Estado. Os presos brasileiros são pessoas conformadas com
a injustiça social. Apesar dos presos – salvo raríssimas exceções – viverem em
condições desumanas, poucos se envolveram em fugas (572) ou suicídios (8). Logo,
trata-se de pessoas servis, dóceis e subjugadas, ao contrário do que é
propalado pelo discurso midiático escatológico.
Concluindo, a sociedade brasileira,
apesar de heterogênea (opressora,
desigual, injusta e dividida em classes), possui uma população carcerária
altamente homogênea.
Esse perfil dos presos é indício de
que a maior parte dos sujeitos selecionados são pessoas que vivem no contexto de marginalidade e pobreza extremas,
muitas vezes, agravadas por prévias passagens no sistema prisional. Apesar da
pretensão de diminuição da população carcerária inserida na Lei n. 12.403/11,
que alterou o Código de Processo Penal em relação à prisão processual, a “morte
era anunciada”: a população carcerária não diminui. Um dos motivos para esse
problema é a falta de uma Defensoria Pública devidamente instrumentalizada nos
Estados e uma jurisprudência desgarrada da visão reacionária do Direito Penal.
Sem esses dois elementos dificilmente haverá diminuição da população carcerária
e da violência estrutural e institucional.
·
Advogado. Professor de Direito Penal e
Criminologia. Coordenador do Núcleo de Estudos de Ciências Criminais da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Especialista em
Direito Penal pela Universidade de Salamanca (USAL) e Mestre em Direito do
Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
[1] A violência estrutural está ligada às relações de produção nos
processo de trabalho, em todos os setores da atividade humana, enquanto que a violência institucional se liga ao
conteúdo e à atuação ou funcionamento diferencial das superestruturas do poder
político e jurídico do Estado. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições
da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 85.
[2] Segundo Bustos Ramírez e
Hormazábal Malareée, só poderá ser considerado criminólogo quem trabalha com
dados empíricos que tenha obtido de suas próprias investigações ou das de
outros. In BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.;
HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernán. Lecciones de
Derecho Penal: parte general. Madrid: Trotta, 2006. p. 38.
[3] ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Trad.
Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 70.
[4] Para melhor compreensão da
seletividade, cabe destacar que, do total da população carcerária considerada
pelo InfoPen (508.357), até junho de 2012: a) 18,3% são analfabetos ou
alfabetizados: b) 56,37% possui ensino fundamental (in)completo; c) 18,5%
possui ensino médio (in)completo; d) 1,25% possui ensino superior (in)completo;
e, e) 0,01% possui pós-graduação.
[5] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do
Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 47.
[6] “Curto espaço de tempo”
para quem está livre. Mas, uma “eternidade” para quem sobrevive nas malhas do
sistema carcerário.
[7] Em nosso país a política criminal é substituída por política penal. O Estado não cuida
adequadamente de questões como emprego, salário digno, escolarização, moradia,
saúde e outras medidas complementares, que são programas capazes de alterar ou
de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado
de trabalho e dos direitos de cidadania. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 4. ed. rev.
Florianópolis: Conceito, 2010. p. 419.
[8] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do
desvio. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
p. 36-49.
[9] MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Trad. Francisco R. Cornejo. 2. ed.
rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2011.
[10] RUGGIERO, Vincenzo. Crimes e mercados: ensaios em
anticriminologia. Trad. Davi Tangerino, Luciana Boiteux e Luiz G. M. de Paiva.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[11] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da
família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo:
Global, 2006.
[12] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania:
para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte/Rio de Janeiro:
UFMG/IUPERJ, 2003.
Como citar este artigo: GORNICKI NUNES, Leandro. Sintomas da Violência Estrutural e Institucional. Olhar Jurídico. Cuiabá. Acesso em 04 mar. 2013:
http://juridico.olhardireto.com.br/artigos/exibir.asp?artigo=Sintomas_da_violencia_estrutural_e_institucional&id=249
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