domingo, 9 de maio de 2010

Sobre Homens e Pinguins

Amanheceu

— Vamos! Apressadamente exclamou Dora ao irmão Alonso, que, numa fria manhã de sábado, aguardava-a ansiosamente para irem ao Centro Velho da "Terra da Garoa", conhecer os maiores sebos deste país, cuja poeira guarda grandes relíquias jurídicas. E a irmã de Alonso continuou falando com pompas de nova rica para impressionar aquele com quem tivera vivido os maiores tempos de miséria:
— Quero voltar logo para irmos o quanto antes à Ilha Bela!
— Sim, serei breve! Deixe-me buscar meus trocados; - respondeu o camarada aficionado pelas letras jurídicas.
Os irmãos entram no luxuoso carro importado de Dora e lá chegando estacionam nas proximidades do Largo São Francisco. Alonso fica chocado com a quantidade de homens jogados nas calçadas, cobertos por mantas para tentarem se proteger do rigoroso inverno paulistano, e desabafa:
— Essa injustiça social precisa acabar!
Dora rispidamente verberou:
— Isso é coisa de vadio! Trabalho é que não falta. Falta é cadeia para esse povo.

No Sebo

— Impressionante! Há obras importadas de extremo valor jurídico, abandonadas nesse lugar...
Assim pensava o jovem estudioso das Ciências Criminais, buscando os melhores títulos da sua área. Enquanto Alonso admirava estarrecido os milhares de obras expostas naquelas estantes que comportavam grandes pensamentos jurídicos da história ocidental, ao fundo se ouvia uma cantoria desenfreada com palavras proféticas que saía da boca de um sujeito religioso fanático. Eis que, impaciente com os vinte minutos perdidos naquele templo cultural, ouviu-se aquela aguda e inconfundível voz:
— Vamos Alonso! Desse jeito perderemos a balsa para Ilha Bela e não poderei mostrar a suntuosa casa que construí, nem o barco...
— Tenha calma, minha irmã! Só mais uns clássicos do Direito Penal e poderemos ir.
— Clássicos?! Queres estudar para pôr bandido nas ruas, não é? Deverias estudar Direito Tributário!
Já perdendo a paciência com a histeria da irmã, Alonso dispara:
— Espero que tua filha nunca precise dos meus préstimos!
— Gente séria jamais precisará!
Sentindo que a discussão se acalorava, Alonso decide encerrar suas compras. Porém, "conversando com os seus botões", questionou-se intimamente:
“...O que estou fazendo no meio de um sebo, na companhia de uma dondoca, ouvindo um crente alienado cantarolando palavras vazias, enquanto pessoas sobrevivem nas ruas, com frio e fome?...”

Na rua

Já fora do sebo, os irmãos continuam a conversa, agora iniciada por Alonso em tom imperativo:
— Teu marido precisa fazer alguma coisa! Um vereador tem condições de resolver humanamente essa situação.
— O Fernando tem mais o que fazer ao invés de ficar ajudando gente que não quer ser ajudada. – Assim respondeu a ex-pobretona, querendo fugir das antipáticas indagações políticas do irmão.
— Não digas besteira!
Envergonhada com a pobreza das suas afirmações, Dora sussurra timidamente:
— Esse povo gosta de ficar nas ruas...
Persistente, Alonso arremata afirmando:
— A casa de vocês é capaz de abrigar todos os mendigos dessa calçada, e imagino que na casa de Ilha Bela seja possível abrigar todos os demais da outra praça.
Dora, cansada com a conversa que classificara de enfadonha, graduada em economia e, agora, diretora de uma importante instituição bancária, esbraveja, movimentando as barulhentas pulseiras de ouro puríssimo que carregava:
— Lá vem tu com esses “papos” de comunista!

Na Ilha Bela

A tarde estava ensolarada e a família reunida na Ilha Bela passeava tranquilamente quando Fernando, o proeminente político local, convida a todos para degustarem deliciosos frutos do mar em um refinado restaurante. Sentaram-se à mesa, Dora, Fernando e Alonso, na companhia da matriarca e das crianças.
— Quero uma cerveja estupidamente gelada! Disse Alonso, apontando para o garçom com o braço alçado e o dedo indicador esticado, como se suplicasse, diante de tanta futilidade, um gole daquela dionisíaca anestesia. Enquanto isso todos faziam os seus pedidos:
— Alcance-me a travessa de camarões, por favor!
— Algo mais?
— Sim! Sirva-me uma taça de Veuve Clicquot.
— Pois não!...
Uma sórdida harmonia infestava o ambiente, até que é avistado no mar, cujas ondas se chocavam no trapiche do restaurante, um frágil pingüim desgarrado do seu grupo naquelas águas quentes, demasiadamente quentes...
Preocupado com o animal indefeso, Fernando diz:
— Se eu fosse biólogo cuidaria do pobre pingüim.
Indignado, Alonso questiona:
— E os homens abandonados nas calçadas do centro?!
Nesse momento, com os olhos marejados e o coração abatido pelo sentimento de piedade, Dora desabafa:
— Alguém precisa fazer alguma coisa!
Alonso sorri, e, com uma desconfiada esperança, pergunta:
— Aos homens do centro?
Dora, sem nada dizer, não desprende seu olhar do animal...

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